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Cidades/Geral
Segunda - 08 de Maio de 2023 às 10:14
Por: Eduardo Gomes/Diário de Cuiabá

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Em 1970 Cuiabá era chamada Portal da Amazônia e o Brasil se dividia entre os que queriam vir para Mato Grosso e os que não desejavam ficar em seus lugares. Naquela e nas duas décadas seguintes houve a ocupação do vazio demográfico por uma engenharia humana sem nenhuma combinação entre os migrantes e que resultou no povoamento da Terra de Rondon. No campo a agricultura enleirava o cerrado e a pecuária fazia o corte raso generalizado, ambos amparados e incentivados pelo Incra, que exigia desmatamento para titular as áreas devolutas, e essa exigência destacava a necessidade da derrubada da mata ciliar para eliminar o mosquito anofelino, mais conhecido por mosquito da malária.

Estava em vigor o regime militar, que tinha forte apoio dos agropecuaristas, para os quais ofereceu programas de financiamento a juros simbólicos, carência e pagamento a perder de vista. Em alguns casos o governo permitia que ao invés de recolher imposto em seu estado de origem o mutuário destinasse a quantia que seria dos cofres da União para seus projetos rurais na Amazônia Legal. Para ser base territorial da aplicação dos programas, os militares criaram a figura institucional da Amazônia Legal composta pelos estados amazônicos, parte do Maranhão e Mato Grosso. Esse cenário arrastou para o Vale do Araguaia o empresário Wagner Canhedo, dono da Vasp, e Sílvio Santos via Lojas Tamakavy. Não somente magnatas vieram para Mato Grosso no período; lavradores, pequenos pecuaristas, comerciantes e aventureiros também chegaram. Enquanto uma parte dos novos moradores lutava na legalidade pela terra, havia invasões generalizadas tanto na zona rural quanto nas cidades, sendo que em Cuiabá surgiu a famosa 'indústria do grilo', da qual nasceram muitos bairros que ainda hoje têm problemas fundiários. A grilagem cuiabana abrigou milhares de migrantes que chegaram à cidade e não conseguiram emprego. Assim, no período a Capital registrou índices anuais de crescimento bem acima de 10%.

A grilagem em Cuiabá, que teve seu pico nos anos 1980 e 1990, ainda hoje dá dor de cabeça ao município. Em muitos bairros não há regularização fundiária, o que cria insegurança jurídica para o morador, impede a prefeitura de lançar carnê do IPTU e de fornecer licença para funcionamento comercial, complica a entrega de correspondências e facilita ligações clandestinas de energia e energia, o famoso gato, além de impedir a pavimentação de ruas.

A ocupação do solo despertou a vocação mato-grossense para o agronegócio. Até 1979 a produção agrícola era pequena, mas naquele ano aconteceu o salto que foi a arrancada para Mato Grosso assumir a liderança nacional no cultivo da soja, algodão, milho, na produção de etanol e na cria, recria e engorda do maior rebanho bovino do país.

Enquanto a Bolsa de Chicago virava feijão de festa para o mato-grossense, acontecia um fenômeno interessante. Cuiabá não produz commodities agrícolas, mas desde 1970 a Capital tornou-se endereço de parte de muitas famílias recém-chegadas a Mato Grosso. Enquanto os pais formavam fazenda em Paranatinga, Araputanga ou Sinop, os filhos permaneciam em Cuiabá em apartamento alugado ou comprado. Manter a filharada em Cuiabá para estudar não era o único contato dos migrantes com a principal cidade da nova terra, que também era endereço certo para quem necessitava de atendimento médico ou internação.

Na medida em que o tempo passava a dependência educacional tornava-se menor, e até mesmo o ensino superior inverteu o caminho da juventude, com a criação de cursos universitários em Rondonópolis, Cáceres, Sinop, Barra do Garças e dezenas de outras cidades. Os municípios ganharam infraestrutura, mas os vínculos com a Capital permaneceram e parte dos primeiros migrantes dos anos 1970, mesmo sem transferir seus negócios, preferem morar em Cuiabá, pela qualidade de vida que a cidade oferece.

O Estado da Capital Portal da Amazônia avançou em todos os sentidos, mas enfrenta gargalos e desníveis entre municípios. O avanço praticamente retirou de cena as balsas que faziam travessias de rios, mas dentre as poucas remanescentes permanece aquela que sempre foi operada na maior travessia, num trecho rio abaixo e rio acima de 3,8 quilômetros no rio Juruena, no limite de Nova Bandeirantes e Cotriguaçu, e que será substituída pela maior ponte mato-grossense, com 1.429 metros, cuja obra foi autorizada pelo governador Mauro Mendes.

O setor rodoviário, importante sob todos os aspectos e, sobretudo pela extensão territorial mato-grossense, ainda tem bolsões sem acesso pavimentado. No Vale do Araguaia, os municípios de São Félix do Araguaia, Alto Boa Vista, Luciara, Novo Santo Antônio, Serra Nova Dourada, Bom Jesus do Araguaia, Canabrava do Norte, Porto Alegre do Norte, Confresa, Vila Rica, Santa Terezinha, São José do Xingu, Santa Cruz do Xingu e Gaúcha do Norte, não têm acesso pavimentado direto para Cuiabá. Na região Noroeste, as cidades de Aripuanã, Colniza, Cotriguaçu, Juruena e Rondolândia esperam pelo asfalto para ligá-las à Capital.

A divisão territorial municipal mostra contrastes. Enquanto São Pedro da Cipa tem 344 km², a área de Colniza é de 27.960 km². Colniza não é o único município na faixa de 20 mil km²; iguais a ele, Aripuanã, Cáceres, Juara, Juína, Paranatinga, Apiacás e Comodoro estão no mesmo patamar. No caso de Cáceres é impossível pensar em subdivisão, pois a maior parte do município é formada pelo Pantanal, área que permanece alagada entre dezembro e maio.

Sem política de incentivo regionalizado para os pequenos municípios Mato Grosso assiste as grandes cidades crescendo e as pequenas permanecerem estagnadas ou até mesmo perdendo moradores.

A população em alguns casos está associada à localização. Rondonópolis com 240 mil habitantes centraliza as indústrias de sua região. Ao lado daquela cidade, São José do Povo, com quatro mil habitantes, não tem indústria para gerar emprego, e não consegue atraí-las por conta da força política do município vizinho. Esse mesmo fato se repete em Sinop, com 149 mil residentes, e Santa Carmem, sua vizinha ao lado, com cinco mil cidadãos.

O perfil dos 141 municípios é de pequena população. Um grupo reduzido tem mais de 50 mil habitantes: Cuiabá, 624 mil; Várzea Grande, 290 mil; Rondonópolis, 240 mil; Sinop, 149 mil; Tangará da Serra, 107 mil; Cáceres, 95 mil; Sorriso, 94 mil; Lucas do Rio Verde, 70 mil; Primavera do Leste, 64 mil; Barra do Garças, 62 mil; e Alta Floresta, 52 mil. Na outra ponta, dentre outros, Araguainha, com 909 habitantes; Ponte Branca, Santa Cruz do Xingu, Nova Nazaré, Reserva do Cabaçal, Nova Santa Helena, Luciara, São José do Povo, Porto Estrela, Indiavaí, Figueirópolis D'Oeste e Araguaiana. Osmari Azevedo, ex-prefeito de Araguainha tenta explicar a baixa população de seu município. Segundo ele, parte dos moradores trabalha na vizinha Alto Araguaia e em outras cidades, e quando os recenseadores percorrem as casas não encontram esses cidadãos.

Ao lado dos três filhos, dona Laura, cujo sobrenome será preservado, tem uma preocupante definição para seu estado civil: viúva de marido vivo. Isso mesmo! Dona Laura divide os quatro cômodos de seu barraco nos fundos de um quintal no bairro Dr. Fábio, em Cuiabá, com a perradinha de três, quatro e cinco anos. O marido trabalha na safra da soja e do milho numa fazenda em Campo Novo do Parecis. A cada dois meses, Izael, o marido, passa um final de semana com a família.

Em Cuiabá muitas são as donas Laura. Seus maridos são trabalhadores sazonais do agronegócio, uma vez que não há mercado de trabalho para toda mão de obra sem qualificação na Capital, que há muito não recebe indústrias; essa realidade cuiabana contribui para o agravamento dos bolsões periféricos de pobreza, onde meninas na puberdade são arrastadas para a prostituição e garotos imberbes são aliciados pelo crime organizado.

A opulência do agronegócio e a linha de pobreza serão temas da próxima reportagem, com o título: Ricos e pobres entre os milhões e a fome





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