Aos 98 anos, poconeano mantém viva prática de benzer enfermos Com um altar e inúmeros santos, Seo Dito atende em casa quem precisa de oração
Vivendo em uma pequena casa de alvenaria com paredes verdes, às margens do Rio Cuiabá, o poconeano Benedito Pereira, de 98 anos, há décadas senta-se em frente a um pequeno altar e ora por aqueles que precisam de proteção.
Com o auxílio de seus mais de 30 santos, entre imagens nas paredes e estátuas no altar, Seo Dito, como é conhecido, clama pelos enfermos e pelos desprotegidos espiritualmente.
Para ele não existe distância: seus benzidos podem estar em Cuiabá ou na Alemanha, mas com a força da fé, a consagração os alcançará.
Sou analfabeto, sou negro, mas sou limpo
“Eu não faço nada, é Deus quem faz por mim. Para a fé não tem distância”, diz ele, ao relembrar o nome de todos aqueles que suas orações já foram direcionadas ao redor do Mundo.
O dom da oração surgiu ainda na infância. Aos 10 anos ele já sentia quando alguém precisava de benção. Na ocasião, andava pelas ruas de Poconé e avistou uma pessoa com a perna enferma.
“Eu ia passando e vi ele com a perna inchada. Falei: “Tio, benze essa perna”. Mas ele olhou e me mandou embora. Uma outra pessoa que estava sentada com ele o convenceu a benzer. Ele me chamou de volta e eu benzi. No outro dia a perna dele estava sãzinha”, orgulha-se Seo Dito.
Hoje ele continua a exercitar sua fé. Quando uma de suas imagens se parte, Seo Dito a joga nas águas do Rio Cuiabá para a natureza agir sobre elas.
Sem estudos, ele se orgulha de sua trajetória.
“Não sei ler. Sou analfabeto, sou negro, mas sou limpo. Saio por aí com minha cabeça erguida para falar com Deus. Esta mão nunca roubou e na minha carteira está registrado que servi o Exército por dois anos”, relata.
Quando jovem, viajava de cidade em cidade sozinho; caminhava de Cuiabá a Poconé; de Poconé a Cáceres; de Cáceres a Vila Bela da Santíssima Trindade. Entre muitas viagens, sua única companhia era uma mochila e a presença de Deus, como ele relata.
“Isso foi em 1947, 1948. [Andei ] Tudo a pé, mas não tinha medo. Eu ficava muito cansado e mal conseguia ficar acordado, só queria deitar e dormir. Deus me protegia e nunca me aconteceu nada”, relembra.
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Ainda hoje ele diz contar com esta proteção divina. Há dois meses Seo Dito teve a casa, de um cômodo, consumida pelo fogo enquanto ainda dormia. Ele diz não ter presenciado as chamas. Quem o resgatou foi uma de suas seis filhas. Ele conta o milagre recém-vivido como uma história difícil de se acreditar.
“Ali tinha um sofá, mas o fogo queimou tudo. Tinha muita fumaça, que na minha idade já podia me matar. Foi minha filha que viu e veio me chamar. Ela disse que uma voz chamou. Mesmo com o fogo, nenhuma cinza me queimou, eu nem acordei. Vê se não foi Deus?”, pergunta.
Morador de Cuiabá há 56 anos, Seo Dito é uma figura popular pelas ruas do bairro onde mora, o Novo Terceiro. Basta perguntar a qualquer um sobre onde encontrar o benzedor que a pessoa logo é direcionada para a casa de paredes verdes, que vive cercado de natureza.
“Eu gosto de cuidar dos bichos, me lembra da época que eu era vaqueiro”, diz ele mostrando os animais no fundo do quintal.
Com quase um centenário de história, Seo Dito não se esquece do tempo em que era moleque. Entre as muitas imagens na parede, a representante de seu povoado se destaca. Figura política importante na história de Poconé e Mato Grosso, Doninha do Tanque Novo tem um espaço reservado na memória do benzedor, que a reverencia quase como uma santa.
“Eu estava lá no dia em que prenderam ela. Eu tinha dez anos de idade e estava lá com meu pai. Me lembro dela falando: 'Daqui a pouco vou ser presa'. O povo não acreditava, mas ela tinha uma santa que a guiava".
Doninha é o nome pelo qual Laurinda Lacerda Cintra era conhecida. Líder religiosa e comunitária do vilarejo Tanque Novo, foi uma presa política conhecida pela oposição ao governo de Getúlio Vargas. Mesmo sabendo da prisão iminente, ela deixou uma mensagem direcionada apenas ao jovem Benedito que ali vivia.
“Ela olhou pra mim, encostou no meu braço e disse: ‘Não larga desse caminho, porque longe daqui, respeito e educação irão acabar. O Mundo vai ter injustiça e divisão’. Realmente aumentou muitos caminhos pelos anos, mas não vou largar o meu. Mas também não desfaço o caminho de ninguém. Vou seguir pelo meu caminho e o resto é resto”, declara.
Outros caminhos
Não desfaço o caminho de ninguém, eu vou seguir pelo meu caminho e o resto é resto
Pai de oito filhos - seis mulheres e dois homens - Seo Dito é avô, bisavô e tataravô. Com a casa sempre cheia de familiares e de pessoas em busca de oração, ele perdeu cedo aquele que desejava seguir seus passos.
O filho, André, foi assassinado. Ele era o único descendente de Seo Dito que almejava seguir a prática secular de orar pelos necessitados.
Ainda emocionado ao relembrar a morte, Seu Dito diz também esperar a sua hora.
Ele acorda cedo, toma um pouco de guaraná ralado e oferece um copo àqueles que já não estão mais na vida terrena.
“Eu ainda rezo para aqueles povos antigos. Todo dia eu rezo e levo guaraná para eles. Todo dia. Tem um cantinho ali que coloco o guaraná para eles e assim vou continuar meu caminho até o dia em que Deus me permitir”.
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