Bazucas e emprestadores de última instância
Desde o início os eurocéticos vêm insistindo que o projeto do euro não é sustentável, porque a Europa não é uma área monetária ótima. Mas, mesmo diante da baixa mobilidade de mão de obra entre os países, a viabilidade do euro poderia ser garantida caso houvesse uma centralização fiscal, que permitisse transferências automáticas de recursos destinadas a países que sofressem choques negativos, como ocorre em uma federação. As dificuldades políticas para a adoção desse tipo de centralização fiscal, que implicaria em perda de parte da soberania de cada país, impediram até agora a sua adoção.
Ao contrário da prescrição acima, a indisciplina fiscal sempre esteve presente e as punições para países não cumpridores dos limites presentes no tratado de Maastricht nunca saíram do papel. As diferenças de produtividade entre países também nunca foram equacionadas através de reformas que tornassem as economias mais eficientes, fato que se refletia nas enormes diferenças salariais existentes entre os vários países do grupo. Enquanto o mundo seguia o embalo da "grande moderação", iludido com o sonho de que os ciclos econômicos haviam sido abolidos, o crescimento das economias e a abundância de liquidez mantiveram encobertos os problemas latentes.
Foi neste cenário que a crise financeira decorrente do estouro da bolha imobiliária nos EUA em 2007/08 provocou um choque que afetou de forma assimétrica os países da União Europeia. Havia países que passavam por bolhas imobiliárias, como a Espanha; países com dívidas elevadas, como a Grécia; países com dívidas elevadas, mas sustentáveis, como a Itália; países muito produtivos e com dívidas pequenas, como a Alemanha. A forte desaceleração das economias provocada pela contração generalizada de crédito, junto com problemas de insolvências de bancos em alguns países, foi enfrentada com expansão dos gastos públicos. Com isso, as dívidas públicas cresceram; muitas se tornaram insustentáveis e, diante do tamanho das taxas de juros que têm sido obrigadas a pagar para rolar suas dívidas, várias estão no caminho da não sustentabilidade.
Além da falta de competitividade dos países da periferia, que os obriga a enfrentar deflações para baixar seus salários relativamente ao câmbio, a Europa vive uma típica crise de dívida soberana, e a história mostra que estas vêm junto com crises bancárias. A velocidade com que o contágio vem se espalhando é muito grande, e a crise de dívida soberana, que no passado foi imaginada como sendo exclusiva dos países periféricos, já atingiu todos os países mais importantes do bloco. A Itália vem pagando juros próximos de 7% para colocar títulos de 10 anos; o spread dos títulos de 10 anos da França sobre os papéis equivalentes da Alemanha chegou a atingir, por curto período, inusitados 200 pontos base; a Alemanha tem enfrentado elevação nas taxas pagas, que ainda são baixas, mas tem aumentado a dificuldade na rolagem da sua dívida. Além disso, a ameaça de rebaixamento pelas agências de risco é uma espada permanente sobre os países.
Este era um cenário muito distante há pouco mais de dois meses, quando foi fechado o acordo entre a Grécia e os bancos. Julgava-se que o pior havia sido afastado e que o contágio não atingiria nem a Itália, nem a Espanha. Entretanto, diante das dificuldades políticas encontradas na montagem uma "rede de proteção" através de um vigoroso aumento do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), essa previsão foi rapidamente desmentida, com o contágio chegando à própria Alemanha.
Para muitos, a "solução" do problema está nas mãos do Banco Central Europeu (BCE), que deveria tornar-se um "emprestador de última instância", salvando o euro. O que de fato está sendo pedido ao BCE? Será que a mudança no seu papel resolveria o problema da UE?
Há duas formas de um banco central ser um emprestador de última instância. A primeira está dentro das atribuições de todos os bancos centrais do mundo, e visa evitar uma crise bancária sistêmica. Os princípios dessa ação foram enunciados por Walter Bagehot, no século XIX, e ainda continuam válidos. Diante do risco de uma crise bancária sistêmica: empreste livremente aos bancos; a taxas de juros penalizantes; e contra bons colaterais. Bancos captam recursos à vista e emprestam por prazos longos, e por isso são, por definição, ilíquidos, mesmo quando não são insolventes. Se diante de uma corrida bancária os bancos centrais não atuarem como recomenda Bagehot, é elevada a probabilidade de uma crise bancária.
Na crise de 2008 todos os bancos centrais agiram seguindo estes princípios. Foi o que fizeram: o Federal Reserve; o BCE; o Banco da Inglaterra; e, em escala muito menor, foi o que fez o Banco Central do Brasil, oferecendo linhas de comércio exterior e reduzindo recolhimento compulsório sobre depósitos. Foi esta, também, a motivação da ação coordenada dos bancos centrais de vários países na última semana, quando agiram para reduzir o risco de que a atual contração do crédito na Europa provocasse uma recessão mais profunda, agravando ainda mais a própria crise de dívida soberana.
O BCE já vem desempenhando essa dimensão da função de emprestador de última instância há algum tempo, e de forma até mais generosa do que aconselhava Bagehot, pois vem oferecendo farta liquidez aos bancos, com taxas baixas e colaterais menos sólidos do que exigia no passado, expondo-se a um problema de fragilização do seu balanço e de moral hazard. Adicionalmente, vem comprando títulos públicos dos países com dificuldade de rolagem no mercado secundário - mais de 180 bilhões até a semana passada -, coisa que está sendo feita à margem do seu estatuto.
Mas o mercado vem pressionando para que o BCE funcione também como emprestador de última instância dos governos, para salvar as dívidas soberanas, o que é um papel muito diferente do descrito acima. A recomendação mais frequente é para que o BCE fixe uma taxa de juros máxima para os títulos e compre o que for oferecido no mercado a essa taxa. Por exemplo, há quem proponha que os yields dos bônus de 10 anos da Itália não excedam 4% ao ano. A esperança de que, para evitar o fim do euro, uma bazuca desse porte venha a ser utilizada anima os mercados nos momentos de euforia.
Contrariamente ao que parece à primeira vista, quando o Fed disparou as rodadas de expansão quantitativa, elevando o seu balanço, tomou claramente uma decisão de política monetária que estava muito distante de sua rendição às imposições de uma política fiscal expansionista. Buscava a queda das taxas de juros mais longas para ativar a economia, e não o financiamento de déficits públicos. Já se o BCE realizar compras ilimitadas de bônus dos governos de países independentes e não limitados por uma centralização fiscal, estará trazendo as obrigações de política fiscal desses governos independentes para a sua esfera de ação, o que significa pura e simplesmente a cristalização da dominância fiscal.
A história da América Latina é muito rica em exemplos de dominância fiscal e do consequente descontrole inflacionário, que retardou o crescimento econômico durante décadas. A memória desses custos já se perdeu na poeira do tempo, e a discussão atual confunde a função de emprestador de última instância para os bancos, para evitar uma crise bancária, com ações através das quais o BCE substitui os Tesouros dos países.
Quando a Alemanha e o BCE se opõem a esta solução, não somente estão reafirmando o princípio de que a proibição do financiamento inflacionário dos gastos públicos é uma condição indispensável para gerar a estabilidade monetária, como estão buscando uma solução que evite outras consequências. Se o BCE estabelecer um limite superior aos bônus dos países mais afetados pelo contágio e realizar compras ilimitadas, estará gerando moral hazard, induzindo todos os demais países com graus mais elevados de disciplina fiscal a abandonarem o controle fiscal. Estará destruindo um dos pilares sobre o qual foi construído o plano do euro, que é um banco central supranacional, não ligado a nenhum país, que sofre restrições maiores do que o Federal Reserve ou o Banco da Inglaterra.
A UE deveria caminhar na direção da centralização fiscal, impondo uma perda parcial de soberania aos países, que entregariam parte de suas receitas para uma autoridade central. Com esta garantia talvez seja possível se pensar na emissão de um eurobônus, que ao lado da imposição de forte disciplina fiscal aos países começasse a criar as condições para a sobrevivência do euro. O fim do euro não interessa a ninguém, muito menos à Alemanha, que tem sido a grande beneficiada desde o início, dado que sua economia é muito competitiva e faz uso de uma taxa de câmbio muito mais depreciada do que seria, caso não pertencesse à UE. Seria natural, portanto, que a sua contribuição fosse maior do que a de qualquer outro país, mas o ideal é que se refletisse em ajuda fiscal, e não em quebra de princípios, como o de não tornar o BCE um instrumento fiscal.
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