"Algumas coisas mudaram para melhor, outras para pior", conta o dono do bar ao encher três copos de plástico com refrigerante. O estabelecimento fica na rua Canitar, bem próximo à Joaquim de Queiroz, principal via da favela da Grota, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro. Duas mesas, cadeiras vazias e luz apagada para não desperdiçar energia. O comerciante pragueja contra o mau momento para negócios. "Antes (da ocupação) tinha muito mais movimento", dizia, dividindo a atenção com um programa de jornalismo policial na televisão.
Na tela, um homem explicava como havia sido baleado em uma briga de trânsito na zona oeste do Rio de Janeiro. As cenas eram seguidas por comentários do dono do bar: "Gente maluca. Uma vez parei um policial que subiu a rua atirando para cima do morro. Disse que tinha muita gente lá, que podia matar inocentes. Ele mandou que eu saísse de perto e continuou atirando".
As lembrança sdo tiroteio presenciado por ele são antigas. São anteriores ao dia 28 de novembro de 2010, quando tanques da Marinha passaram por aquela mesma rua vencendo as barricadas erguidas com trilhos de trem e carros tombados pelos traficantes que controlavam a região. Mas, um ano após a ocupação, o medo é de que eles voltem a ocorrer com a mesma frequência de antes, quando o bar vivia cheio.
A 2 km dali, na avenida Itararé, local conhecido pelos moradores como a antiga fábrica da Coca-Cola e que hoje funciona como sede das forças de pacificação, o general de brigada Otávio Santana do Rêgo Barros, comandante da tropa de 1,8 milhomens que controla os complexos do Alemão e da Penha, comemora as estatísticas. "Em um ano, tivemos sete mortes violentas na área. Esse é o número para toda a cidade de Madri na Espanha", compara.
O general Rêgo Barros assumiu o comando no dia 7 de novembro, após a troca de tropas prevista para ocorrer a cada três meses pelo Comando Militar do Leste. Há pouco mais de três semanas no Alemão, ele herdou um ambiente com focos de hostilidade e resistência do tráfico. O histórico da ocupação pode ser positivo, como mostram os números citados pelo general, mas também é marcado por incidentes que preocupam. No dia 4 de setembro, moradores entraram em confronto com militares após uma discussão. O uso de spray de pimenta e de balas de borracha contra a população foi contestado. Dois dias depois, balas traçantes cruzaram o escuro da noite evidenciando a presença de traficantes armados nos arredores. Os incidentes, na visão do atual comandante, foram pontuais e não representam o cotidiano da atuação militar no Alemão.
Operações
Às 12h45 da última quinta-feira, um comboio de veículos do Exército chegou de surpresa e trancou os acessos das ruas Itajoá e Antônio Rego, em uma das subidas para a Pedra do Sapo, uma das áreas mais conflagradas do complexo de favelas. Uma tropa de aproximadamente 40 homens subiu a ladeira junto com cães farejadores da PM e começaram a vasculhar algumas casas. Eles tinham informações da inteligência das forças de paz de que ali poderia haver armas escondidas. Os moradores ficaram apreensivos. Ninguém podia subir.
"Tomo remédio para pressão e agora não posso ir até a minha casa. Como vou ficar?", protestava o auxiliar de limpeza Severino Tagino da Silva, 64 anos. Uma mulher disse que havia deixado a comida no fogão e que precisava subir. Ainda assim, teve de esperar. Uma outra, preocupada, mostrava um molho de chaves para as tropas. "Minha casa está trancada, eu posso abrir se vocês precisarem entrar", dizia. Um oficial respondia educadamente: "estamos fazendo uma operação na área. Por favor, a senhora precisa aguardar". A tropa nada encontrou e, às 13h20, a rua foi novamente liberada.
Em uma operação semelhante no dia anterior, três pessoas foram presas e foram apreendidas drogas e uma granada. "São ações legais, amparadas por mandados, que fazemos cumprir da forma mais segura possível para os moradores", justifica o general Rêgo Barros. Na noite do mesmo dia, um novo tiroteio deixou um soldado do Exército ferido com um tiro de raspão em um braço.
Durante o dia o clima de tensão não é explícito. Está nas entrelinhas, em entradas escondidas de vielas aparentemente tranquilas, em olhares desconfiados de jovens que ficam nas calçadas sem atividade aparente. E está no bate-papo autocensurado de moradores ainda ressabiados em falar. "Uma vez eu falei com uma repórter e já saiu fofoca por aí, por isso não falo mais", justificou a moradora Rosa Reis, 37 anos.
Em um retrato de antes e depois, a rua Joaquim de Queiroz, que costumava abrigar uma das maiores concentrações de venda de drogas ao ar livre da comunidade pré-ocupação, deixa evidente as mudanças. Antes, uma rua de chão batido, com lixo espalhado por todos os cantos, com fios emaranhados e com esgoto correndo em valas abertas. Hoje, uma rua pavimentada, comércio organizado e muros com grafites que retratam a história da região.
Com degraus pintados com as cores do Brasil, a subida conhecida pelos moradores como rua da Escada leva até a praça do Cruzeiro, com uma vista panorâmica para a zona norte do Rio. No meio do caminho, Luzimar Severino dos Santos, 54 anos, e Ana Alice, 48 anos, conversavam sentadas na escada. Ana Alice conta que o teleférico, aberto para a população em julho, mudou sua vida. "Agora a gente vai para tudo o que é lado, eu vou visitar a minha filha, que mora no outro morro", diz. O teleférico faz parte dos investimentos federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para o Complexo do Alemão. Luzimar aponta para o chão. "Olha aí, agora tem esgoto tapado. Antes era aberto", comemora. Mas ela diz que nem todas as comunidades receberam as melhorias. Ela reclama da falta de creches públicas para poder deixar sua neta enquanto trabalha.
Creuzimar Severiano Santos, 18 anos, uma das quatro filhas de Luzimar, se aproximou. Vestindo mochila e uniforme escolar, a menina conta que faz parte do grupo de canto e dança do Afroreggae. "É muito bom morar aqui. Aqui sempre funcionou o respeito, em qualquer época", disse a jovem, que está no primeiro ano do ensino médio. Sobre outros assuntos, todas elas respeitam a lei que continua em vigor no Alemão, a do silêncio.
De acordo com o general Rêgo Barros, o silêncio é quebrado através dos canais de denúncia, como o número 0800 021 7171, para o qual os moradores podem ligar e fazer denúncias sem se identificar. O comandante afirma que é nas ligações onde as tropas recebem a maior demonstração de apoio da população. Já com data para acabar, a ocupação militar está programada para dar lugar às Unidades de Polícia Pacificadora em abril, no Complexo da Penha, e em junho, no Complexo do Alemão. Para o general, é um passo importante no caminho para alcançar o que ele considera o maior objetivo da operação: entregar a região novamente para os moradores sem a ameaça do tráfico armado.
"É uma maratona. Estamos nos primeiros 10 km. Temos que tomar muito cuidado para não desanimar. Ainda tem muito pela frente. Mas nós vamos vencer porque o Brasil precisa disso", afirma.
Ocupação no Rio
O Complexo do Alemão foi ocupado por forças de segurança no dia 28 de novembro de 2010. A tomada do local aconteceu praticamente sem resistência, numa ação conjunta da Polícia Militar, Civil, Federal e Forças Armadas. Três dias antes da operação, a polícia havia assumido o comando da Vila Cruzeiro, na Penha. Ambas as comunidades eram dominadas, até então, pela facção criminosa Comando Vermelho.
As ações foram uma resposta do Estado a uma série de ataques de criminosos nas ruas do Rio de Janeiro. Em uma semana, pelo menos 39 pessoas morreram e mais de 180 veículos foram incendiados. Após as ocupações, foi criada a Força de Pacificação (FPaz), constituída pelo Exército e pelas polícias Civil e Militar, para atuar por tempo indeterminado na região.
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