Ecos da visão desencantada
“Temos que tomar medidas que fortaleçam a indústria. O mercado brasileiro deve ser usufruído pela indústria brasileira, não pelos aventureiros que vêm de fora”, disse o ministro da Fazenda ao anunciar, no início do mês, um pacote de incentivos à produção nacional. Sem saber, Guido Mantega prestou uma oportuna homenagem a Policarpo Quaresma, célebre personagem da ficção brasileira que acaba de completar cem anos.
Tomado de um amor “sério, grave e absorvente” pelo Brasil, o nacionalista fanático criado pelo jornalista e escritor Lima Barreto tinha sua própria receita para o desenvolvimento nacional – uma receita controversa, é verdade, mas que parece inspirar até hoje a equipe econômica. Tanto que a retórica do ministro Mantega guarda semelhanças com a do major Quaresma, que, num de seus arroubos patrióticos, diz o seguinte: “Não protegem as indústrias nacionais... Comigo não há disso: de tudo que há nacional, eu não uso estrangeiro”.
Acima, casa em que Lima Barreto viveu parte da infância, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro
Biografia
Ao longo de seus 41 anos, Lima Barreto viu publicados quatro de seus romances e foi internado num hospício em duas ocasiões:
1881 – Numa sexta-feira 13, em maio, nasce Afonso Henriques de Lima Barreto no Rio de Janeiro.
1887 – Em dezembro, sua mãe morre de tuberculose.
1893 – A Armada revolta-se no Rio contra o governo republicano. Barreto usaria esse período histórico para retratar Policarpo Quaresma.
1897 – O futuro escritor ingressa na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Seu pai gostaria de vê-lo graduar-se engenheiro.
1903 – O pai enlouquece e Lima Barreto é obrigado a deixar a faculdade para sustentar a família. Começa a trabalhar na Secretaria da Guerra.
1905 – Passa a trabalhar como jornalista profissional, para o Correio da Manhã.
1909 – Consegue publicar, em Portugal, o primeiro romance: Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
1911 – O Jornal do Commercio começa a publicar em folhetins Triste Fim de Policarpo Quaresma. A versão em livro só sairia quatro anos mais tarde.
1914 – Lima Barreto é internado pela primeira vez num hospício, por problemas derivados do alcoolismo.
1915 – A Numa e a Ninfa é publicado em capítulos pelo jornal A Noite.
1918 – Aposentado precocemente por invalidez.
1919 – Lança, também em folhetins, o romance Vida e Morte de M. F. Gonzaga de Sá na revista Souza Cruz e é novamente recolhido ao hospício.
1922 – Lima Barreto morre no Rio de Janeiro, em decorrência de problemas cardíacos.
1923 – Seu último romance, Clara dos Anjos, é publicado postumamente.
Dom Quixote dos trópicos
">“E ele se lembrava que há bem cem anos, ali, naquele mesmo lugar onde estava, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e ilustres estiveram presos por quererem melhorar o estado de coisas de seu tempo. Talvez só tivessem pensado, mas sofreram pelo seu pensamento. Tinha havido vantagem? As condições gerais tinham melhorado? Aparentemente sim; mas, bem examinado, não.”
Toda a obra de Lima Barreto diz respeito ao homem que ele foi. Mas Recordações do Escrivão Isaías Caminha talvez seja o livro no qual o autor carioca mais conseguiu traduzir, por meio da ficção, suas experiências pessoais, angústias e frustrações. O romance, lançado em 1909, dois anos antes de Triste Fim de Policarpo Quaresma , ganhou recentemente uma edição caprichada da Penguin/Companhia das Letras, com prefácio do historiador Francisco de Assis Barbosa, que fez um estudo sobre o autor, contextualizando o livro à época em que foi publicado.
Entrevista
Em que medida o homem Lima Barreto – mulato, com boa formação cultural, mas de classe média baixa e alcoólatra – se vê refletido em sua obra, mais especificamente em Recordações do Escrivão Isaías Caminha?
Crítica ao nacionalismo doentio e à situação social e política dos primeiros anos da República, Triste Fim de Policarpo Quaresma foi publicado pela primeira vez entre 11 de agosto e 19 de outubro de 1911, em capítulos, no extinto Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. O romance descreve como o confronto com a realidade concreta abalou os ideais e a lucidez de um homem convicto da superioridade de sua nação.
Avanços
Ambientado no início da década de 1890, Triste Fim... convida o leitor a traçar paralelos entre o Brasil daquele tempo e o atual. Felizmente, há várias diferenças: o país diminuiu muito a distância que o separa da potência sonhada por Policarpo Quaresma. Mas nem um século de avanços – quase sempre lentos, graduais, pontuados por retrocessos aqui e ali – foi capaz de nos libertar do atraso.
É espantoso como vários trechos do livro parecem fazer referência a acontecimentos de dias atrás. Caso da seguinte passagem, em que o narrador menciona a troca de cargos esperada ao fim da Revolta da Armada, de 1893: “Os suspeitos abririam vagas e as dedicações suprimiriam os títulos e habilitações para ocupá-las; além disso, o governo, precisando de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações”. Fica claro que a cultura política de nosso setor público mudou quase nada de lá para cá.
Ambições
Curioso notar que, enquanto o inglório personagem de Lima Barreto enlouqueceu e chegou a seu triste fim sem persuadir o presidente Floriano Peixoto a aproveitar as potencialidades brasileiras, hoje é o próprio governo quem beira o delírio em seu firme propósito de convencer o mundo (brasileiros incluídos) da proeminência do país – e o faz muito antes de resolver as mais triviais questões domésticas.
Não erradicamos o trabalho escravo nas lavouras de cana-de-açúcar (onde ele existe desde 1532), mas nos julgamos capazes de mediar conflitos no Oriente Médio. Não conseguimos deter o avanço da violência urbana, mas esperneamos por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas ao mesmo tempo em que abraçamos ditadores.
Somos hoje um país bem menos pobre que há cem anos – na última década, em especial, vivenciamos uma auspiciosa ascensão social. Ainda assim, pouco mais de um quarto da população vive na pobreza ou na miséria, proporção indigna para qualquer potência que se preze. A taxa de analfabetismo recuou de quase 80% para 10% no último século, mas nossas prioridades na educação ainda carecem de lógica: os gastos por aluno no ensino superior são seis vezes maiores que no ensino fundamental, onde está o maior gargalo. Há questões ainda mais desafiadoras, que transcendem aspectos orçamentários. Uma delas é que 40% da evasão do ensino médio é provocada por desinteresse dos alunos, bem mais que por necessidade de trabalhar (27%) ou falta de vagas (10%).
Província
Ainda não sabemos como resolver esses problemas, mas, em compensação, derrubamos rapidamente outros obstáculos que supostamente impediam o avanço de nossa cultura. O destemido Congresso, por exemplo, acaba de estabelecer cotas de conteúdo nacional na tevê por assinatura. Uma decisão que seria louvada por Policarpo Quaresma – sempre tão preocupado em resguardar as tradições brasileiras da influência estrangeira – mas que, na verdade, só atesta como é provinciana a nossa visão de cultura e como ainda falhamos em produzir conteúdo que ganhe o público por sua qualidade e relevância, e não por imposição da lei.
No plano econômico, podemos dizer sem medo que superamos a praga da saúva, que tanto afligiu o major Quaresma, e nos tornamos uma potência agrícola que nem em seus devaneios ele havia vislumbrado. Devemos parte desse feito a inovações tecnológicas desenvolvidas aqui mesmo – às quais, vale destacar, o major provavelmente resistiria (“as terras mais ricas do mundo não precisavam desses processos que lhe pareciam artificiais”). Mas, como em fins do século 19, o campo ainda é cenário de desigualdades e paradoxos. Abismos separam produtores familiares dos grandes empresários rurais, e muitos desses, embora empreguem o que há de mais avançado em suas lavouras, insistem em transgredir os aspectos mais primários das leis trabalhistas e ambientais.
Proteção
Nossos industriais, por sua vez, parecem longe de encontrar um caminho próprio. Insistem na ideia de competir por meio do preço e não da diferenciação dos produtos, e vivem de suplicar proteção estatal contra mercadorias estrangeiras – mas omitem ou ignoram que, apesar da abertura iniciada em 1990, o Brasil ainda tem uma estrutura tarifária que faz dele uma das economias mais fechadas do mundo. Major Quaresma poderia até achar isso bom; no entanto, nossa história recente é rica em exemplos de que indústria nacional sem concorrentes não evolui, cobra mais caro e, quando tenta exportar, leva um baile. Do outro lado do balcão, o governo, que resiste em abrir mão de arrecadação para aliviar as empresas, também não faz o que deve para melhorar a estrutura de transportes, cuja precariedade eleva em 15% o custo dos exportadores.
Se dedicasse um tempo ao estudo das boas intenções do governo, como as mencionadas no início deste texto, e os supostos ideais patrióticos de muitos empresários, major Quaresma acabaria se desapontando. Cedo ou tarde, perceberia que a conta, para variar, é invariavelmente paga por contribuintes e consumidores brasileiros. Sejam eles patriotas ou não.
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