Um recruta de 18 anos alega ter sido estuprado por quatro colegas, enquanto cumpria pena disciplinar em um alojamento
Estupro de soldado dentro de quartel vira polêmica
A denúncia de um caso de violência sexual, ocorrido em maio passado, dentro de um quartel do Exército Brasileiro no Rio Grande do Sul, permanece sem desfecho. Um recruta de 18 anos alega ter sido estuprado por quatro colegas, enquanto cumpria pena disciplinar em um alojamento do Parque Regional de Manutenção, na cidade de Santa Maria, a 290 quilômetros de Porto Alegre.
Nesta sexta-feira (26), o deputado estadual Jeferson Fernandes (PT), membro da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, acrescentou que o Inquérito Policial Militar (IPM), instaurado pelo Exército, foi encaminhado ao Ministério Público Militar, que devolveu a peça porque ela não apresentava o exame de corpo de delito feito pelo Instituto Médico Legal, exame realizado apenas após a solicitação da família do recruta.
- Um dos advogados do jovem leu a conclusão (do IPM) e me disse que nela constava que houve efetivamente a relação sexual, contudo, na interpretação do Exército, ela teria sido consentida. É um absurdo, estou estarrecido. Até porque isso vem somente agora. Antes, eles (o Exército) estavam negando que havia ocorrido a relação sexual. Eles deveriam ter alegado, então, que as evidências apontavam para uma relação sexual. Não era isso que estavam dizendo, mas diante das provas materiais, mudaram. O advogado me informou que o exame do IML aponta que o DNA localizado no lençol da vítima é o mesmo de um dos acusados e há outros resquícios de esperma, mas, como estavam muito misturados, não deu para diagnosticar de quem seriam - enfatiza o deputado, designado para acompanhar de perto a apuração.
Fernandes reiterou o que havia informado em entrevista a Terra Magazine na noite de quarta-feira (24): que identificou várias falhas nos procedimentos adotados pelo Exército logo após o episódio ser informado pelo soldado. A avaliação consta em um relatório elaborado pelo parlamentar e encaminhado à Casa legislativa.
- Primeira conclusão: a perícia foi muito mal feita. Tinha que ter sido completa. Nas roupas da vítima, das pessoas que estão sendo acusadas. No espaço físico onde teria ocorrido a violência. Segunda: o menino teria que ser acompanhado por um psicólogo tão logo que denunciou, para que inclusive tivesse preparo na hora de contar para os pais. E os pais tinham que ter sido informados a respeito. Foi um despreparo no trato com a vítima, um despreparo na análise técnica do caso, o que levanta suspeitas, sim. Se o Exército tivesse realizado todo trabalho bem feito, nós teríamos uma resposta. O problema é que o procedimento foi inadequado.
O parlamentar, que teve contato com o soldado, conta que o rapaz está abalado, "sente muita vergonha" e só passou a receber acompanhamento psicológico oferecido pelo Exército após reivindicação de seus advogados. Ele destaca ainda ter ouvido de um comandante que a violência "se tratava de uma criação da cabeça do jovem", embora o exame realizado dentro do hospital da instituição tivesse indicado "lesão no ânus".
Na avaliação do representante da Comissão de Direitos Humanos, há, de fato, uma tentativa de encobrir o que aconteceu. "O que fica muito evidenciado, o que dá para interpretar é que eles queriam resolver o mais rápido possível, sem dar publicidade ao caso, ou mesmo, com receio de que aquilo (o estupro) efetivamente se comprovasse".
Confira a entrevista.
Terra Magazine - Qual é a sua percepção em relação ao desenrolar do caso? Para o senhor, há um movimento do Exército no sentido de abafá-lo?
Jeferson Fernandes - Isso está muito evidenciado. Até porque, eu tive uma conversa com o general que comanda o Exército na Região Sul do País e ele me falou várias coisas. Até penso que ele imaginou que eu não daria divulgação para o conteúdo da nossa conversa. Tão logo eu fiz isso, ele se mostrou muito revoltado. Nós quisemos aprovar um relatório na Comissão de Direitos humanos, a partir das oitivas que eu fiz e o que nos faz agora aguardar mais um tempo é um exame do Instituto Médico Legal.
Para você entender: Na ocasião da denúncia do rapaz, o exame no corpo dele foi muito mal feito. Além disso, não averiguaram nada no local do ocorrido. Não averiguaram os lençóis da cama do rapaz, a roupa íntima dele, as roupas dos envolvidos. Não precisa ser profissional da área do Exército ou da área da segurança para saber que, quando se faz uma perícia, é nos mínimos detalhes. Oito dias após o ocorrido, é que, por conta de uma denúncia que a mãe, o pai, mais o advogado fizeram, que eles recolheram essas roupas e levaram até o Instituto Médico Legal (IML).
Qual avaliação o senhor faz disso? Por que, na sua opinião, não houve a captura das provas imediatamente?
O que fica muito evidenciado, o que dá para interpretar, é que eles queriam resolver o mais rápido possível, sem dar publicidade ao caso, ou mesmo, com receio de que aquilo (o estupro) efetivamente se comprovasse.
Outra coisa totalmente equivocada que aconteceu: o rapaz fez a denúncia e foi levado para um hospital militar e lá ficou durante três, quatro dias, sem que seus pais soubessem que ele tinha sido vítima de um estupro.
Na sua interpretação, é mais um indício de que houve uma tentativa de abafar o caso?
Claro. Inclusive, colocaram um guarda junto dele (da vítima). O que o general me disse? "Deputado, se ele quisesse avisar os pais, óbvio que nós não o proibiríamos. Até porque ele ficou com o celular que lhe pertencia em mãos".
Eu disse para ele: "Como um menino de 18 anos vai ter condições psicológicas para ligar para mãe e para o pai e dizer que foi estuprado?" O Exército, enquanto instituição que lida com jovens, deveria, imagino... que tenha médicos, psicólogos, que, inclusive, iam orientar o menino, encorajá-lo a contar, preparar o pai e a mãe. Mas eles não fizeram isso. A mãe do jovem ficou sabendo porque eles (o Exército) fizeram um exame no rapaz, ficaram com receio de que ele tivesse doença venérea, e foram se socorrer de um médico civil para que receitasse uma vacina, uma injeção, e o médico suspeitou que fosse um caso de violência. Vendo os dados do menino, constatou que conhecia a família. Esse médico civil é que contou para a mãe o que havia acontecido.
Então, a família ficou sabendo por meio deste médico civil.
Deste médico, que, inclusive, se propõe a testemunhar. Ele acabou receitando medicamentos fortes para o menino, com a intenção de evitar a proliferação de alguma doença. O general me disse assim. Aliás, eram três generais, mas o comandante mesmo que falava. Ele me disse assim: "Tudo indica que não houve a violência sexual, porque dos meninos que estavam juntos, nenhum testemunhou confirmado o que ele (a vítima) disse".
Mas não há um exame de corpo de delito para comprovar a violência?
Ele tinha feito o exame. Daí, eu perguntei: "General, o exame feito dentro do hospital do Exército, o que realmente constatou? Ele respondeu: "Constatou que tinha uma lesão no ânus". Eu argumentei, dizendo que isso já era um elemento a favor da vítima. "Ah, mas ninguém prova". Mas aí, se está fazendo um pré-julgamento. Até porque, não se consegue provar se esses meninos (testemunhas) foram coagidos por alguém.
Esses representantes do Exército com quem o senhor conversou eram exatamente quem? Estão envolvidos no Inquérito Policial Militar?
O Exército, no caso, é comandado por esse general Etchgoyeh. Até não posso reclamar quanto à atenção que deram. Mas eles foram deslocados e indicados pelo Comando Geral do Exército para responder para toda e qualquer pessoa que quisesse tratar do tema. Falando em nome do Exército, eles me disseram isso, que estou te falando. Na interpretação deles, pela experiência que têm, se tratava de uma criação da cabeça do jovem. Esta é a versão.
Eu soube que chegou a ser feita uma ilação sobre a sexualidade da vítima. Disseram que ele era homossexual.
Esta é uma afirmação que a mãe do menino faz. Tão logo que os pais souberam, eles foram até o hospital militar, primeiro, naquela dúvida do que realmente tinha acontecido. Quando souberam da história por inteiro, eles foram conversar com um sargento, um sub-tenente que comandava a unidade onde ele (o menino) trabalhava. Esse cidadão teria dito: "Não, vocês estão cegos, não estão percebendo que o filho de vocês é homossexual. O que ele fez foi concedido. Nós, como Exército, não podemos responder por isso".
O inquérito que eles estão fazendo (IPM) já devia ter sido concluído há bastante tempo. Eu tive essa conversa com eles há dois meses. Foi no final do mês de junho. Na ocasião, eles me disseram que estavam aguardando esse segundo exame, que é do IML, portanto é um exame civil, não mais sob a tutela do Exército.
O Exército falou isso para o senhor?
Isso, o Exército.
E este exame ficou pronto, o senhor teve acesso a ele?
Aí é que está o detalhe. O resultado deste dito exame não vem. E a conversa aconteceu há dois meses. Nesse meio tempo, para além do relatório, porque eu tive que expor para todos os deputados o que estava acontecendo, eu também entrei em contato com o Ministério Público Federal, que foi orientado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, coordenada pela ministra Maria do Rosário. Ela mandou um pedido ao MPF para que acompanhasse o caso. Eu entrei em contato com o promotor que está responsabilizado por isso. Mas é aquela coisa, fica muito institucional. O próprio Ministério Público não querendo se meter muito porque é o Exército. Disse para que eu ficasse tranquilo, porque ele estava acompanhando.
Só que qual é a queixa dos familiares? O promotor não havia sequer conversado com o menino (vítima) e com seus pais para saber sobre a outra versão do ocorrido.
Para o senhor, há um certo pudor, excessos de reserva por envolver o Exército Brasileiro?
Eu não tenho dúvida quanto a isso. Há uma nítida proteção da instituição, que é exagerada. Ela ao mesmo tempo que "protege" a instituição, acaba causando uma injustiça com um menino que está muito perturbado. Ele está com um abalo psicológico profundo.
O senhor teve contato com ele.
Eu tive. Conversei muito com ele.
E qual foi a percepção do senhor? O que concluiu?
Até uma coisa que eu constatei e coloquei isso no relatório. É um menino muito introvertido. Acho que não tem perfil para estar no Exército. Ele próprio me confessou que não é muito comunicativo, que tinha dificuldades para acompanhar o ritmo dos meninos, seus colegas dentro do Exército. E ele era motivo de chacota entre os colegas. Aquele carinha mais lerdo dentro do grupo.
Ele me confessou que tinha um amigo só e que os outros eram meio hostis em relação a ele pelo seu jeito introvertido. Tiravam sarro dele pelo seu estilo mais acanhado, mais devagar. Eu perguntei: "Mas vocês tiveram brigas anteriores? Os meninos eram seus inimigos? Como era sua relação com esses rapazes?". Ele respondeu: "Não éramos amigos nem inimigos. Convivíamos, só que, volta e meia, eles pegavam no meu pé. Vinham com brincadeiras idiotas, passavam a mão na minha bunda, me empurravam". Quer dizer, começa assim e depois culmina naquele tipo de violência. Eles estavam no alojamento, cumprindo uma pena disciplinar. Ele (vítima) tinha falhado um dia no Exército, dormiu demais, uma coisa assim, e cumpriu pena de dez dias de detenção. Tinha que dormir no alojamento com os demais colegas.
O alojamento onde teria acontecido a violência.
Exatamente.
Esse menino chegou a comentar porque escolheu entrar para o Exército? O senhor destacou que ele tem um perfil introspectivo...
Ele não teve opção. O Exército faz sua seleção. É obrigatório. É um menino de porte físico bom, aparenta ser saudável. Então, em regra, o Exército olha isso. Se não tem uma conduta criminosa ou tem passado idôneo, mais a condição física, bom, já fecha os critérios para entrar no Exército.
E como ele está agora? Como tem sido a rotina dele?
Está terrível. Fica todo tempo em casa. Pensa muito no ocorrido. Ele me relatou. Dava para notar que cada vez que ele narrava o ocorrido, transmitia muito sofrimento. Ele sente muita vergonha dos familiares, dos amigos. Imagina o que é para um menino de 18 anos passar por isso.
Agora, ele tem acompanhamento psiquiátrico. Depois da reivindicação dos pais é que passou a ter esse acompanhamento de especialista. Não havia tido ainda.
Oferecido pelo Exército?
Sim, mas só depois que ele saiu do hospital e os advogados entraram em cena. Antes, ele não havia tido nenhuma entrevista com ninguém.
Quais as frentes de investigação que estão trabalhando no caso?
Funciona assim: o Exército abriu esse inquérito e tem um registro na Polícia Civil sobre o caso.
Parece que a mãe do recruta procurou a Polícia Civil.
Isso. A Polícia Civil vai se utilizar do resultado do inquérito policial (militar) para fazer sua averiguação. O Ministério Público também precisa se utilizar desse inquérito para tomar as providências. Qual é o nosso papel, enquanto Comissão de Direitos Humanos? Eu fui designado para fazer esse acompanhamento e perceber se, efetivamente, o inquérito vai ser finalizado, em que termos vai ser finalizado, se a Polícia Civil vai tomar providências e o próprio Ministério Público. Para nós (da Comissão), fica bem difícil porque se percebe uma lentidão demasiada num caso que poderia ter sido apurado, encaminhado em 15, 20 dias no máximo.
Mas esses procedimentos investigatórios têm um prazo para ser concluídos. O prazo já excedeu.
Até os generais haviam me dito que o prazo era de 20 dias, aí, pediram a prorrogação para mais 20. Eu até reclamei. Liguei dizendo que já tinham passado de 40 dias. Quando eu indaguei, há poucos dias, disseram que não tem mais prazo. Disseram que não há nada na legislação que regula o Exército, falando que tem prazo. É complicado. Uma hora me falam uma coisa. Outra hora me falam outra.
O que ajudou muito, e é bom que se diga isso, para que as coisas não fossem acobertadas mesmo, foi a ação muito qualificada dos advogados contratados pela família do menino. Eles tiveram muita coragem. A família me contou que muitos advogados não quiseram pegar a causa porque, enfim, quando se tratam dessas instituições, muitos se atiram para bem longe. Têm medo de se indispor.
O Exército deu uma justificativa para tanta morosidade na investigação do caso?
Não. Depois que eu conversei pela última vez e apresentei o relatório do que eu tinha ouvido e a minha interpretação, eles acabaram não mais se comunicando comigo. Liguei, deixei recado para tentar conversar, apurar o que está acontecendo, mas com eles, não estou conseguindo mais contato. Está difícil.
Resumindo, quais as principais conclusões que o senhor apresentou no relatório?
Primeira conclusão: a perícia foi muito mal feita. Tinha que ter sido completa. Nas roupas da vítima, das pessoas que estão sendo acusadas. No espaço físico onde teria ocorrido a violência.
Segunda: o menino teria que ser acompanhado por um psicólogo tão logo que denunciou, para que, inclusive, tivesse preparo na hora de contar para os pais. E os pais tinham que ter sido informados a respeito.
Foi um despreparo no trato com a vítima, um despreparo na análise técnica do caso, o que levanta suspeitas, sim. Se o Exército tivesse realizado todo trabalho bem feito, nós teríamos uma resposta. O problema é que o procedimento foi inadequado.
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