Getúlio Côrtes, o negro gato da jovem guardaPaquito
O Canal Brasil tem a grade musical digna de aplausos, com os programas O Som do vinil, Zoombido, Pelas tabelas - dedicado aos novos nomes - e MPBambas. Neste último, Tárik de Souza, o homem responsável por, nos anos 70, entrevistar João Gilberto para a Veja, dá voz e põe luz sobre gente como Johnny Alf, Tito Madi, Roberto Silva e Billy Blanco, entre outros, geralmente pouco lembrados, mas importantes por mostrar que a canção do Brasil é vária e vasta.
E Tárik, além de ter embasamento histórico, nutre simpatia por seus interlocutores ocasionalmente ocultos. Ele sabe que, pra haver um João Gilberto, têm de existir vários Blancos, Monteiros e Alfs. A importância aparentemente mínima dá o máximo de si, e é indispensável.
Pois Getúlio Côrtes foi o entrevistado do MPBambas, da sexta passada. O negro gato contou histórias de canções e canções de histórias, despojado, simples como sua obra, tranquilo com seu legado. Uma das faces da música negra do Brasil mostrou a cara, ou, como disse Tárik, apresentando-o, "a Jovem Guarda também tem seu lado negro".
Como escreveu Paulo César Araújo, o biógrafo de Roberto Carlos, a maioria dos compositores das canções que o Rei cantava, nos seus primeiros discos, era de origem negra e pobre. A gente lia, nos selos e capas, os nomes de Helena dos Santos, Nenéo e Pilombêta, sem se dar conta de que cara e cor tinham aqueles autores. Destes, o mais presente nos discos de Roberto dos anos 60 e 70, além do próprio e de Erasmo, era Getúlio Côrtes, com até duas faixas por LP.
Getúlio é o autor da antológica Negro gato e mais Noite de terror, O feio (com Renato Barros), Pega ladrão, O gênio e O sósia, canções que contam historinhas, aventuras urbanas, aparentadas da linguagem dos quadrinhos e do cinema, rápidas, ritmicamente aceleradas, de uma sensibilidade pop que será incorporada à linguagem da chamada MPB na posterior Baby, de Caetano. Por esse prisma, Getúlio é pré-tropicalista, e sabia da "piscina, da margarina e da gasolina". Quando essas canções foram gravadas, de 65 a 67, não se considerava que Roberto Carlos fazia música brasileira. Mas era. E era a Jovem Guarda. Era Getúlio Côrtes, pop e moderno.
Nas canções de Getúlio, um universo identificado com a juventude rebelde à James Dean & Elvis, com um quê de malandragem nativa: Frankesteins; um homem perseguido porque roubou um coração, outro sujeito feio pra danar, mas querido pelas mulheres, um gênio da lâmpada que dá um baile no seu Aladim, rouba a garota dele e ainda se instala na casa do cara, Macunaíma do rock. E tem aquela do "cara com a minha cara, mora!", seu duplo, William Wilson tropical, O sósia.
Do Negro gato, por exemplo, sempre relacionada à temática negra, Getúlio fez questão de dizer que a inspiração veio de um gato mesmo, que o atormentava à noite, nos tempos da juventude. A música foi gravada, primeiro, por Renato e seus Bluecaps, depois por Roberto, bem mais tarde, por Luis Melodia, e ainda Marisa Monte. Melodia canta a canção lindamente, mas as melhores gravações ainda são as primeiras, com Renato e, sobretudo, Roberto.
Nestas, o gato está íntegro, sujo, despojado, vagabundo e vulgar. São gravações proto-punks, sem chiquê, cruas. Instrumentação básica de rock, sem virtuosismo, simples e até tosca. Roberto vai direto ao assunto, sem variar, e mostra porque é um dos maiores intérpretes do rock no Brasil.
O próprio Getúlio, que compôs também canções de amor, mais "adultas", foi sugerido pelo Rei a sair do seu universo infantil, e não se fez de rogado. Seu material romântico é matador, a julgar por suas canções do primeiro disco "maduro" de Roberto, O inimitável, de 1968: O tempo vai apagar (com Paulo César Barros) e Quase fui lhe procurar, também regravada por Luis Melodia.
Sob um olhar mais atento, porém, na fase "inocente", a gente vai descobrindo a malícia de O feio. Sapato 54, "vasto narigão/ me lembra um grande pimentão", "careca e bem sisudo", além de "bicudo", qual o motivo de tanta sedução? Ora, o feio é o falo.
Nunca me esqueci do primeiro show de Itamar Assunção em Salvador, no Teatro Castro Alves, há uns trinta anos. O artista criava tensão e estranhamento com o Nêgo Dito. Este baixou, literalmente, e cantou O sósia, gravada antes e também por Roberto. A briga entre um sujeito e seu duplo, na interpretação de Itamar, deslocada do contexto do Iê iê iê, tomou ares de luta entre marginais por território.
Nada é só o que parece ser. Aquelas canções do Roberto e Erasmo também são dos Edsons, Renatos, Helenas e Getúlios. Negros gatos, à margem, nos becos e telhados de zinco, comendo o mingau pelas bordas. O Rei e seus soldados.
Nos créditos finais do programa, uma surpresa bacana: o próprio Getúlio, cantando e não deixando dúvida. Ele é mesmo o Negro Gato. De arrepiar.
Por fim, só para dar notícia de como anda o Programa de Fomento à Poluição Sonora no Estado da Bahia, como sempre a toda: o Centro Médico Castro Alves, na Rua Leovigildo Filgueiras, escolhe as noites para efetuar serviços de reforma, e olha que há prédios vizinhos de residência, onde, por coincidência infeliz do destino, eu moro. Já vai longe o tempo em que gatos barulhentos serviam de inspiração para compositores. Com obras noturnas em estabelecimentos que se dizem de saúde, não há possibilidade de música.
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