O criminoso enviava, de dentro da cadeia, mensagens com instruções para seus subordinados, do lado de fora.
Por bilhetes, Beira-Mar instruía grupos
Dá ordens claras e exige obediência. “Vou lhes fazer um resumo e quero que seja feito exatamente como eu determinar”, está escrito em outro bilhete.
Se ele percebe um erro... “Eu não acredito que vocês fizeram isso sem me consultar. Já deixei bem claro que as firmas são minhas e que vocês não podem tomar certas atitudes antes de me consultar”, disse em um dos bilhetes.
Esses bilhetes não foram escritos por nenhum executivo ou empresário brasileiro, e sim por um traficante: Fernandinho Beira-Mar, talvez o mais perigoso do país. Isso, apesar de estar preso há dez anos, quase sempre em presídios de segurança máxima, como o de Mossoró (RN), para onde ele foi há pouco mais de um mês. É de dentro dos muros que ele dá ordens minuciosas para sua quadrilha.
De acordo com uma investigação do núcleo de combate à lavagem de dinheiro da Polícia Civil do Rio de Janeiro, os textos foram escritos de janeiro a junho do ano passado, período em que Beira-Mar estava na Penitenciária Federal de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Arcelino Damasceno, diretor do presídio na época, hoje à frente da unidade de Mossoró, no entanto, diz desconhecer os bilhetes.
“Eu não tenho conhecimento de tais cartas. Ele tem o direito a papel, tem direito a caneta até para escrever suas cartas. Agora se passou ou não isso não é do meu conhecimento”, afirma o diretor do Presídio de Mossoró, Arcelino Damasceno.
Direito de escrever cartas na prisão, todo preso tem. Mas Fernandinho Beira-Mar não queria que descobrissem o conteúdo de suas mensagens. Por isso, desenvolveu uma técnica para mandar suas ordens, no maior sigilo, em retalhos de papel.
O Fantástico conseguiu com exclusividade os originais desses bilhetes, O maior tem seis centímetros e meio de largura e a menor, menos de um.
O traficante fazia de tudo para que os papeizinhos passassem despercebidos. Conseguia escrever três ou quatro linhas no espaço de uma. Usava apenas a ponta da carga de uma caneta esferógrafica, disfarçada entre os dedos. Provavelmente, apoiava os papéis nos livros que gosta de ler ou no próprio corpo.
A polícia acredita que as mensagens saiam da cadeia com os visitantes, enroladas e escondidas na costura das roupas. Luiz Fernando da Costa tem direito a três horas de visita social por semana e pode receber advogados livremente, conforme prevê a lei.
“Quero tudo no papel. Me mandem por escrito detalhadamente da mesma forma que mando carta para vocês. Para que eu possa trazer para a cela, ler com calma, analisar e codificar. E, na outra visita, se eu tiver dúvidas, mandar por escrito. Pois o meu tempo de visita é muito curto e não dá tempo para eu ler o que vocês me mandam, analisar e mandar resposta”, escreveu Beira-Mar em um dos bilhetes.
Os bilhetes saíam do presídio e iam para as favelas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, onde foram encontrados durante a ocupação do fim do ano passado. Beira-Mar não é do Alemão, mas o conjunto de favelas tinha se tornado o centro das operações da maior facção criminosa do Rio. A polícia logo suspeitou que os textos eram dele. A prova definitiva veio com um exame grafotécnico.
O exame, feito no Instituto de Criminalística Carlos Éboli, usa como base dois documentos escritos e enviados à direção do presídio. Em um deles, Beira-Mar assina “Luiz Fernando da Costa”, e no outro, “Luiz F. da Costa”. Os documentos contêm uma lista de visitantes que ele quer receber.
A polícia comparou os bilhetes apreendidos no Alemão com a relação de visitantes. Os peritos primeiro analisaram o sobrenome “Costa”. Depois encontraram semelhanças na grafia das palavras “visitando” e “visitantes”. As letras "nh" seguem o mesmo padrão nas palavras "dinheiro" e nelas, o final da letra “N” é emendado com o início do “H”.
Ele também escreve “quero” em vários momentos, sempre do mesmo jeito. A proporção das letras se repete perfeitamente nas palavras "meu filho" e "meus filhos". A polícia não tem dúvidas quanto à autoria dos bilhetes apreendidos no Rio.
“A gente não tem notícia de uma prova tão contundente quanto essa. Com a apreensão desses bilhetes e através de exames técnicos específicos, nós conseguimos comprovar que aquela escrita, de fato, foi feita pelo Fernandinho Beira-Mar”, afirma o subchefe da Polícia Civil do Rio, Fernando Veloso.
Para a quadrilha de Beira-Mar, os retalhos de papel com letra minúscula eram a prova da palavra do chefe. A melhor maneira que ele tinha para manter o controle sobre os negócios, que incluem, além do tráfico no atacado e no varejo, o transporte de armas e drogas do Paraguai para o Rio. Todo um esquema complexo que a polícia começou a desvendar com a análise dos bilhetes.
“Nós compraríamos uma carreta em sociedade e traríamos em cada viagem 5.000 quilos de café, sendo 2.500 dele e do tio e 2.500 meus e do chapa”, diz em um dos bilhetes.
A Polícia Civil do Rio estima que em 2010 o traficante enviava a cada 15 dias para o Complexo do Alemão cinco toneladas de maconha, que ele chama no bilhete de “café “. Quando o conjunto de favelas foi ocupado, em novembro, 33 toneladas de maconha foram apreendidas. Dez toneladas eram de Beira-Mar, mas a maconha é apenas um dos produtos que o traficante negocia nas bocas de fumo, ou "firmas", como ele prefere.
“Além do café, viriam junto para os meus fiéis e para minhas firmas sem custo de frete, hidropônica, haxixe, armas, munições, comprimidos e as misturas para as minhas firmas”, escreveu Beira-Mar em um dos bilhetes.
Beira-Mar acompanha tudo, até a cotação no mercado externo de um fuzil, que ele chama de "bico". “O preço de um bico aqui em cima varia de 13 a 14 mil dólares. pistolas na média de 1.200 a 1.500 dólares, mais frete e a porcentagem da casa de câmbio”, diz Beira-Mar em um dos bilhetes.
Depois que a droga é vendida, começa a etapa da lavagem do dinheiro. E agora vem a grande revelação dos bilhetes obtidos pelo Fantástico: o lucro da droga entra e passa a circular no sistema bancário brasileiro através de uma estrutura paralela ao tráfico, que a polícia está chamando de "terceiro setor".
Funciona da seguinte maneira: o dinheiro sai da favela em pacotes de notas pequenas, que somam, no máximo, R$ 10 mil, e são carregados por mulheres da própria comunidade. Elas levam o dinheiro para agências bancárias próximas à favela e fazem vários depósitos miúdos, às vezes minuto a minuto.
O dinheiro entra em contas do esquema de lavagem espalhadas por agências bancárias de todo o Brasil. Em cada um desses bancos, as somas são sacadas na boca do caixa e depositadas em dinheiro vivo em outras contas do próprio esquema, de bancos de outros estados. Assim, evitam transferências que podem ser rastreadas. O destino final do dinheiro a polícia ainda não sabe qual é.
“É possível que a apreensão desses escritos represente um marco na história da investigação contra o tráfico de drogas, porque a partir de agora a polícia sabe o caminho. O terceiro setor pode ser maior do que essa estrutura de tráfico de drogas e é mais potencialmente lesivo do que o próprio tráfico de drogas propriamente dito”, explica Veloso.
Segundo a polícia, o tráfico não tem controle sobre o esquema. O labirinto financeiro é totalmente montado pelo terceiro setor e aos traficantes cabe apenas fazer os depósitos nas contas. “Mande depositar 232 mil. Já está incluído tudo: taxa de câmbio, frete, comissões dos meus fiéis e os mil reais que ganho nas costas dele”, aponta um bilhete.
O grande objetivo da polícia agora é descobrir quem administra essa engenharia financeira que lava o dinheiro do tráfico, mas já identificou 182 pessoas físicas e jurídicas, donas de contas por onde passaram R$ 62 milhões do tráfico só no ano passado.
Quase todo esse valor foi identificado como movimentações bancárias atípicas, feitas em velocidade, forma ou frequências estranhas. Com a análise dos bilhetes, Fernandinho Beira-Mar está mais uma vez na mira da Justiça.
“Ele praticou o crime de lavagem de dinheiro, então ele vai responder por mais esse crime”, garante o subchefe da Polícia Civil.
Os bilhetes revelam ainda que Beira-Mar não desiste da ideia de fugir da cadeia. Em um papel, ele manda sequestrar autoridades que só seriam libertadas quando ele estivesse solto: “Acelerem o cativeiro, pois essa semana a pessoa já vai estar pronta para ser pega”.
O bilhete não revela que autoridade seria essa, mas é ameaçador. Fernandinho Beira-Mar orienta que se essa condição não fosse aceita... “Só lamento. Passem fogo na pessoa e vamos pegar outra com mais peso político”, dizia um bilhete.
No fim do ano passado, já depois da ocupação do Alemão, Beira-Mar foi transferido do Presídio Federal de Campo Grande para o de Catanduvas, no Paraná. Mas a Polícia Federal descobriu que ele tinha outro plano de fuga.
Desta vez, os comparsas queriam invadir a cadeia, resgatá-lo e levá-lo para o Paraguai. Por isso, ele está hoje em Mossoró, no Rio Grande do Norte. O diretor do Sistema Penitenciário Federal, Sandro Avelar, não confirma a existência do plano de fuga, mas também não nega.
“Tem determinadas situações que, em se tratando de um presídio de segurança máxima, nós não temos como falar em público”, disse o diretor do Sistema Penitenciário Federal, Sandro Avelar.
As investigações da polícia devem fazer com que Beira-Mar volte para o regime disciplinar diferenciado (RDD), onde ele fica mais isolado. Mas o episódio levanta uma discussão: é preciso um regime ainda mais duro para impedir que criminosos administrem negócios ilegais de dentro das cadeias?
O deputado federal Fernando Francischini (PSDB-PR), que é delegado da Polícia Federal e tem no currículo operações como a que levou à prisão do traficante colombiano Juan Carlos Abadia, apresentou um projeto de lei no Congresso que cria um novo regime disciplinar para bandidos ultra-perigosos: o RMAX, mais rigoroso que o atual RDD.
“O ponto mais importante é o isolamento do crime organizado. Acabar com as visitas íntimas, onde trocavam recados, cartas para o comando aqui fora. Cela e banho de sol individual, e o advogado e familiares só têm contato com o preso em cabine blindada, com autorização judicial para gravar em áudio e vídeo”, afirma o deputado federal Fernando Francischini.
Pequenas tiras de papel e duas consequências importantes: a discussão sobre como manter um bandido realmente isolado; e a possibilidade inédita de dar um golpe certeiro em um setor do tráfico que nunca foi atingido.
“Hoje a polícia sabe a forma como uma grande quadrilha de tráfico de drogas opera para fazer a lavagem desse dinheiro. Agora é encaixar as peças do quebra-cabeça e desmantelar a quadrilha, usar esse mesmo conhecimento no desmantelamento de outras quadrilhas, porque é bem provável e bem possível que outras estruturas criminosas usem essa mesma engenharia financeira para lavar o dinheiro que vem do tráfico”, conclui Fernando Veloso.
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