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Opinião
Domingo - 01 de Setembro de 2024 às 00:03
Por: Neila Barreto

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O astrônomo português que viajou por algumas vezes à Província de Mato Grosso, Dr. Francisco José de Lacerda, deixou registrado que, (...) no tempo das secas (de junho a setembro), com muita dificuldade se obtém ali um pote de água. O córrego da Prainha, que antigamente conduzia grande volume de água, fica hoje completamente seco, e apenas nos tempos das chuvas conduziam grossas enxurradas, devendo-se isto a derrubada das antigas matas que povoam as suas cabeceiras.

Hoje, esse mesmo córrego carrega para o rio Cuiabá toneladas de lixo e esgotos a contaminar o pantanal mato-grossense, soterrou as lindas praias do Clube Náutico, as de Santo Antônio de Leverger (MT), antes piscosas, limpas, as quais os cuiabanos e mato-grossenses utilizavam como lazer. Hoje não existem mais.

O Prainha está envelopado com uma longa camada de cimento, oculto, para que a população não chore a sua morte. Em seu entorno não existem mais arborização. O córrego das estrelas, denominação dada pelos índios, sumiu. É possível recupera-lo. Como? Restabelecendo as suas nascentes. Tratando o seu esgoto fétido que poluem as suas águas. Quem terá coragem de abraçar essa causa?

Na disponibilização de água doce potável na vila e na cidade de Cuiabá certamente interferiram fortemente as secas e, também, as enchentes. Tratar de secas e enchentes numa perspectiva histórica exige levar em conta dois aspectos pelo menos: como as interferências humanas nos ambientes podem provocá-las (ou pelo menos contribuir para isso) e como as sociedades humanas lidam com elas, como as percebem, como as manipulam, como as relatam, como produzem diversificadas narrativas sobre elas.


Lendo documentos dos séculos XVIII e XIX (e do século XX), venho percebendo que não há uma concepção única de seca ou de enchente. Um estio mais longo e chuvas antecipadas nas cabeceiras podem receber esses nomes.

Às vezes o relato de uma autoridade visa claramente afirmar sua competência pessoal, seu preparo ou despreparo para diagnosticar e apresentar soluções, aumentar seu poder e até sua remuneração. Outras vezes, certas descrições são claros manifestos políticos contra a parcela da elite local que está no poder. Aos poucos, comparando os documentos, penso ter conseguido evitar (em parte, pelo menos) certa “credulidade documental”. Na água sempre esse poder foi exercido até no ato de abrir ou fechar uma torneira.

Pura simbologia. Atualmente, a lenga lenga é a mesma. Estadualiza a água, municipaliza a água, privatização, concessão e o problema continua. Quem abraçará essa causa? E o meio ambiente degradado vai contribuindo para o sumiço dessas águas. Sobre as secas na vila e na cidade de Cuiabá, existem referências que merecem anotação.

Entre 1724 e 1728, ocorreu prolongada seca. Essa demorada seca atingiu também parte do Nordeste brasileiro. Na Bahia, em 1724, o vice-rei Vasco Fernandes César de Meneses (irmão do governador Rodrigo César de Meneses) escrevia ao rei: (...), mas é certo, continua a falta d’água e se Deus nos não acudir com ela, não só não haverá açúcar, nem tabaco, mas, por falta de frutos, pereceremos de fome, informa o historiador Carlos Rosa.

Nas Minas Gerais, correspondência de 1725 refere “uma grande seca, que Deus por quem é nos acuda”. Em Cuiabá, no ano de 1726 no “Treslado de um termo de conferência que a respeito dos Reaes quintos fez o superintendente thenente-coronel João Antunes Maciel” mostrava que: (...) e como o dito ajuste foi feito na supuzição de que haverião ágoas pera se tirar ouro e contribuirem todos a pagar, e não tenhão havido estas e se achava este povo incapacitado(...), atendendo ao estado em que se achava este povo pela falta de ágoas (...). As secas também influenciaram na política de distribuição das terras que visava também não descuidar das atividades agrícolas (...). Em Cuiabá, esta parece ter sido provocada pelas estiagens prolongadas (...), onde a conhecida piscosidade do rio Cuiabá deve ter atenuado, substancialmente, os efeitos da seca e da carestia. Hoje essa piscosidade está ameaçada. Há uma grande queixa por parte de pescadores.

Depois, a seca de 1747-1749: [1747] (...) uma seca que se não viu chuva em todo este ano nem no seguinte, até os fins de mil setecentos e quarenta e nove, que pôs estas povoações em extrema miséria, faltando mantimentos, com o que não só padeceram as gentes, como também os animais, arderam os campos e os matos, que se não viu uma folha verde e só se viam cinzas e fumaças, discorreu José Barbosa de Sá. Sobre esta, Augusto Leverger, o Barão de Melgaço reiterou o que está nos “Anais do Senado da Câmara de Cuiabá”: “Não houve chuva neste ano [1747] e nem nos dois seguintes”. É a realidade de hoje em Cuiabá e municípios vizinhos. Crianças, velhos animais, flora e fauna padecem!

Na virada dos anos 1820 para os anos 1830 outra persistente seca. E nos anos 1851, 1863, a população cuiabana sofria com a falta de água., além das de 1868, 1870, 1871, 1882. À época dominava a seca: “a seca há anos tem sido tal, que tem feito gemer a humanidade e se tem conduzido água de lugares bastantemente longe”. É possível que a seca dos anos 1830, restringindo muito o acesso à água doce potável contribuísse para o aumento da violência em ambientes públicos.

Em 1831, correspondente do jornal a Matutina Meiapontense residente na cidade de Cuiabá referia a falta de água potável ao favorecimento de constantes desentendimentos e cabeças e potes quebrados. Na cadeia da cidade, ainda situada no “Largo da Matriz”, prisioneiras passavam sede: A cadeia desta cidade está pela má construção diametralmente oposta. (...) na prisão de mulheres (...) só existe um Pote para água, por isso sofrem por muitas horas, sede e falta para fazerem comida. Cuiabá, aos 15 de fevereiro de 1831. Assinam: Joaquim Almeida Falcão, Joaquim Alves Ferreira, João Alz. Ferreira e Antônio de Paula Fleury.

Nesse mesmo ano de 1831 a Câmara Municipal da cidade de Cuiabá investiu 50 oitavas de ouro na manutenção da “Fonte do General” na praça da Mandioca atual Caetano de Albuquerque e 800 oitavas na “Fonte do Rosário”, atual avenida Historiador Rubens de Mendonça, objetivando preservar as águas explicitas para a população e para os animais. Hoje completamente destruída, soterrada, no entanto a nascente ronda por lá. O adensamento da cidade soterrou as fontes naturais.

Em 1833 o conselho geral do governo da Província interpelava a câmara da cidade de Cuiabá sobre privatização de matadouro “vizinho à fonte detrás da Matriz”, atual Catedral Metropolitana de Cuiabá. Embora a questão à época não fosse a da proximidade entre matadouro e fonte, seria interessante investigar como a administração pública, municipal e provincial, encaravam tal proximidade. Hoje sabemos o quanto mal faz ao meio ambiente. E a contaminação dos resíduos advindos dos frigoríficos nas águas doces cuiabanas. Ali pelo lado da Várzea Grande-MT sempre há um problema desse nas águas do rio Cuiabá. E o município de Várzea Grande fica calado, mas seus esgotos continuam a contaminar as águas do Cuiabá e, consequentemente suas praias e veredas.

Em 1844 Teodoro José da Costa Roriz (ou Rodrigues) recebeu 86 mil e 950 réis, pela “construção do Chafariz da Prainha”. Nesse sentido, as autoridades demonstrando preocupação com a necessidade de implementar as obras públicas, em relação a água doce potável tentam mais uma vez o encanamento das águas do ribeirão Mutuca (Chapada dos Guimarães-rodovia) para Cuiabá, conforme percebemos na citação: Não sendo suficientes nas ocasiões de seca as Fontes Públicas, que ora existem nesta capital, que cresce a olhos vistos, parece-me indispensável que se trate quanto antes de encanar para um novo Chafariz alguns dos córregos ou ribeirões perenes das vizinhanças da cidade, devendo preferir-se o ribeirão denominado Mutuca. Essa tecnologia não foi concretizada.

Quatro anos depois, em 1849, novos estudos de campo e elaboração de plantas para canalizar e trazer as águas do Mutuca para atender à demanda de água potável na cidade de Cuiabá. Em 1849 – projetei introduzir na cidade água da Motuca, distante daqui 3 léguas mais ou menos, com suficiente altura, e para onde os antigos a tinham trazido por meio de um rego. Encarreguei o primeiro Tenente de Engenheira Pedro Dias Paes Lemes do plano, nivelamento, e orçamento da obra. Pela enorme quantia que montou o orçamento parou o trabalho, conforme registro do Barão de Melgaço. Em 1851 o governo provincial nada ainda conseguira fazer quanto à canalização do Mutuca. O mesmo em 1857. Nunca conseguiu. Trocou de plano, rumou para o rio Coxipó, mas, à época não deu certo.

As enchentes mereceram também registros. Como a de 1780, “excessiva cheia” do rio Cuiabá. Esta destruiu as margens do rio, o engenho e os sobrados dos capitães José Gomes da Silva e Agostinho Rodrigues. E as de 1812 que destruiu a chácara do professor Zeferino Monteiro de Mendonça e 1852. Em Cuiabá as enchentes segundo Virgílio Corrêa Filho, baseado no livro “El Rio Paraguai”, de Luís Tossini estava sujeita apenas às cheias do rio homônimo e seus tributários de montante, não costumavam ultrapassar o mês de março, embora se observem os primeiros repiquetes em princípios da quadra chuvosa.

A de l865, caracterizada como maior enchente com destruição de prédios do segundo distrito (Porto) com grande prejuízo no comércio, combinada com o início da guerra do Paraguai, que por sua vez contribuiu também para o desabastecimento da capital. Outras foram em 1867, a de 1895 que atingiu as ruas do segundo distrito e a de 1905, de curta duração destruindo as casas dos bairros Ana Poupino, Acampamento e Chacrinha, atual Avenida Beira Rio. Hoje na região tudo mudou. Restaram apenas lembranças.

Em março do ano de 1974, a capital mato-grossense sofreu enchentes que fizeram o rio Cuiabá chegar aos 10,87 metros, afirmou o geólogo Caiubi Kuhn. A força da água fez desaparecer os bairros Barcelos, Várzea Ana Poupino e Bairro Terceiro e toda a sua memória, nem a praia de Seu Antônio Ribeiro, cheia de peixe resistiu.

O descaso das autoridades e gestores públicos é tão grande com a proteção e contaminação das águas boas que a população sofre com as consequências e a falta de investimentos no saneamento e no meio ambiente, também contribui. Essa situação fica mais triste porque para a população se refrescar tem que caçar lugares próprios para banhos, uma vez que a maioria seus rios e córregos, antes fontes de água potável estão contaminados, à exemplo dos pontos do rio Cuiabá como: Comunidade São Gonçalo (Cuiabá), Bonsucesso (Várzea Grande), Praia de Santo Antônio de Leverger, em Santo Antônio de Leverger, Cachoerinha em Chapada dos Guimarães, Cachoeira da Mulata, em Jaciara, Balneário Estivado, em Bom Jardim, Nobres e Rio Paraguaia, em Barra do Bugres, conforme o Cenário-MT e Poconé, judiado com a mineração. A população que mais sobre neste período são àqueles com o poder aquisitivo menor.

O saneamento básico merece atenção dos governantes. O meio ambiente grita por mais cuidado. Senhores governantes é necessário abraçar estas causas: secas, enchentes, degradação de nascentes, falta de arborização, leis mais eficientes que protejam as nascentes, os rios, entre outros. O cuidado com o meio ambiente e o saneamento básico pede socorro.

O engenheiro José Luiz de Borges Garcia, já falecido, ex professor da Universidade Federal de Mato Grosso, ex presidente da antiga Sanemat, em 1975 já dizia “ se Cuiabá não duplicar a capacidade das Estações de Tratamento de Água existentes nas avenidas São Sebastião e Presidente Marques, no bairro Quilombo, a cidade sofrerá com grande falta de água nos bairros da capital, ” é o que estamos presenciando no momento. Outra grande preocupação do estudioso era a degradação do rio Cuiabá e os esgotos “in natura” despejados nele pois, com essas atitudes já presenciamos o Pantanal sofrer e ir morrendo aos poucos.

Neila Barreto é jornalista, historiadora e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.



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