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Opinião
Domingo - 29 de Dezembro de 2024 às 00:27
Por: Neila Barreto

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Quando dezembro chega, Cuiabá ganha ares natalinos como todas as cidades brasileiras. Os motivos natalinos relembram o nascimento de Jesus Cristo.

A escritora Maria de Lourdes da Silva Ramos informa que, um dos presépios cuiabanos de 1890, o da casa de Manoel Ferreira Mendes, entre outros, como o presépio de Mestre Maricá, à rua Barão de Melgaço, eram peças confeccionadas de barro. O velho professor primário o arrumava para os alunos muito o festejavam.

Calungas de barro fabricado por ele compunham o presépio primitivo enfeitado com galhos de pitombeira, indispensáveis na decoração dos presépios de minha terra. Antes da consoada, bem à maneira portuguesa, nas casas mais ricas havia troca de prendas e banda de música de João Marinho da Fonseca, maestro local.

À Rua da Fé, atual rua Comandante Costa, o presépio do pintor Mestre Silvestre, com figurinhas de barro cheirando tinta fresca. Violão, modinhas, duo de violino e flauta. Frutas, doces, e torradinhas constituíam as singelas prendas da noite do Nazareno. Invejo os que viram esses velhos presépios que conheci através de leituras e narrativas de meu pai que muito os amava e como ele, tanto os admiro que os coleciono na memória, afirma Maria de Lourdes. Em época menos remota, ramos de pitombeira e de marmelada Silvestre ornamentam o canto da ampla sala onde está montado o presépio da casa de “Seu” Freitas _ armado e todo feito por Dona Nhánhá e Dona Nhazinha, inspiradas artesãs que durante anos embeveceram crianças e adultos, toda uma cidade, com seu trabalho feito de barro, “papier machè”, paciência e muito amor.


De um ano a outro o presépio crescia. Aumentava o número de figuras e o mais observador notaria uma palmeira a mais, mais um animalzinho, mais outro recanto, assim como perceberia a semelhança de algumas figuras com pessoas da cidade. Meu irmão Alberto, nunca se esqueceu de que eram nove os postezinhos de iluminação, que, de imprópria presença, faziam o encanto de todos. Brilhando em meio às folhagens a estrela que anunciou: “Hic de Virgine Maria Jesus Christus natus est”, bastava pôr os olhos em cima, ainda no largo corredor de entrada, sentindo o bom cheiro das folhagens, que meu coração já se enchia de cândida alegria.

Dos lados do cenário santo, jarrões de palmas e capricho. Arco de folhagens e luzes engalanavam o palco, onde habilidade incrível dera vida a várias figuras. O monjolo girava; a cadeira de balanço, à porta da casa onde as janelas tinham luz, movia- se; os nove postezinhos das três ruas também estavam acesos e no largo. A à esquerda os patinhos flutuavam. A ponte sobre o remansado riacho de vegetação bordada às margens convidava a me tornar criatura de Liliput, para poder atravessá-la mil vezes…

Montanhas de aspecto calcário e planuras tatuadas de pequenos animais tomavam um bom espaço do conjunto. Defronte à manjedoura, orava o pastor, único que vi ajoelhado. Próximos a ele: Balthasar, Belchior e Gaspar, junto ao camelo e carregado de presentes para o menino Deus que descansava em meio à palha. Nossa Senhora e São José velavam juntos.

No chão juncado de capim, um jumento e uma vaca de olhar quase piedoso. Sobre o estábulo, crista purpúrea, o galo, a quem coube anunciar a boa nova gloriosa. Cobrindo toda a cena, o céu de papel azul, onde indispensáveis, brilhavam as estrelas e a lua. A todo esse encantamento ainda se juntava a esperança de ganhar de Dona Nhazinha um ramo com algumas pitombas… Oh! Deus, concluiu Maria de Lourdes da Silva Ramos.

Segundo o historiador Lenine de Campos Póvoas, em uma Cuiabá das décadas de vinte e trinta as festas de final de ano eram intensamente comemoradas. A diferença daquela época para a de hoje é que atualmente as festas têm um cunho eminentemente social, ao passo que outrora se revestiam de um sentido religioso e familiar. O Natal era também data festejada em ambientes estritamente familiares.

Após o comparecimento às cerimônias religiosas nas diversas igrejas da capital, as atenções se voltavam para as crianças e para a figura do Papai Noel. Uma tradição que marcava o Natal na Cidade Verde eram os presépios armados em inúmeras residências, abertos à visitação pública desde as vésperas do dia 25 de dezembro até à noite de Reis, no dia 6 de janeiro.

Dezenas deles constituíam atrações nos vários bairros da cidade, reproduzindo a adoração do Menino Jesus pelos Reis Magos e pelos pastores na manjedoura de Belém. Para o historiador Lenine de Campos Póvoas, o tamanho dos presépios, o número de figurantes, os animais que apareciam, a beleza do cenário, tudo variava de acordo com a imaginação, a habilidade e o gosto artístico dos que o projetavam e montavam.

Deodato Arruda, nascido em 1926, funcionário público aposentado, morador da Avenida 15 de Novembro, no bairro do Porto, na capital, já falecido, era um dos confeccionadores de presépios em Cuiabá. Ele dizia que durante quinze noites que duravam a exposição dos presépios, uma das distrações da moçada era sair em grupos para “correr presépios”. Deveriam ser visitados pelo menos sete para dar sorte.

Deodato de Arruda iniciou a confeccionar presépios ainda muito jovem juntamente com um amigo chamado José Teixeira. Entre os anos de 1935 a 1949 faziam com papelão, barro e materiais artesanais as figuras para representar e alegrar o Natal, inclusive com a colaboração dos demais moradores.

Preservando a cultura portuguesa, no Natal Cuiabano sempre existiu a tradição de “correr presépios”, incluindo as visitas às residências daqueles que se dedicam, por iniciativa própria, a manter essa manifestação religiosa e cultural. O presépio do “mestre Cassimiro”, do Colégio dos Padres (o atual Colégio São Gonçalo), por exemplo, foi o primeiro de Cuiabá a ter eletricidade, antes desta chegar a Mato Grosso. Visitei com minha esposa e meus filhos, na Rua 15 de Novembro, nº 465, no Bairro do Porto, quase em frente à “Vila Isabel”, o presépio montado por Deodato de Arruda, com apoio do amigo, e vizinho, José Teixeira. Os dois foram pioneiros no uso das figuras móveis nos presépios. Tudo parecia ter vida através da eletrônica, com o cenário lembrando ambiente ecológico igual ao do Pantanal Mato-grossense, com figurantes, água, aves e animais num grande espaço verde. Sem apoio e estímulo dos poderes públicos, esses presépios estão diminuindo, inclusive no Bairro do Porto, conforme memórias de Francisco Chagas.

Depois, na década de 1940, passou a confeccionar os presépios com o amigo, um trabalho mais elaborado. Mas durou apenas até 1949. Já em 1974, Deodato começou a mudar o presépio colocando movimentos à base de eletricidade, acrescentando figuras maiores e, também, de animais regionais que encantavam sua casa e a todos que por ali passavam.

“Seu” Deodato contava que confeccionar o presépio era notável, tanto pela sua montagem como pela motivação dos personagens, movidos à eletricidade, onde as crianças e os adultos ficavam encantados com as suas cascatas, o pássaro que voava sobre a Lagoa, o pescador que fisgava o peixe, a mulher que socava o pilão, o homem que rachava a lenha, os rapazes que serravam madeiras e muitas outras figuras que se moviam em um lindo cenário sobre o qual aparece um lindo luar.

Conforme memórias do professor Lenine Póvoas, havia em Mar Del Plata, na Argentina, um presépio desse gênero, permanentemente montado num colégio religioso, considerado “atração internacional”. “Já o vi por duas vezes e posso afirmar que o do Sr. Deodato de Arruda não lhe fica atrás em beleza e engenhosidade”, afirmou Lenine em suas memórias. Mais do que um presépio, a estrutura montada por Arruda até o ano 2001, no bairro do Porto, em Cuiabá, é um registro histórico e cultural da vida dos moradores da cidade, que fez colorir a infância de milhares de crianças mato-grossenses. Hoje Deodato e Lenine percorrem presépios no céu.

Além do presépio de Arruda, na Avenida 15 de Novembro, havia os presépios das casas do farmacêutico Arsênio de Morais, de Dona Petita, da Professora Carlina Moreira, este montado na residência de seu pai, o Cel. Antônio Maria Moreira, ex-Intendente Municipal - prefeito.

No final da Rua Barão de Melgaço havia o do “seu” Freitas, próximo ao Largo da Mandioca (centro) da capital, cujas memórias registramos em função de que partiram para outra morada. Conforme a historiadora Juliene Barbosa da Mata, em Cuiabá também havia o presépio do “seu” José Gonçalo de Jesus, nascido em 1942, já falecido, professor aposentado, filho de carpinteiro, que aos oito anos de idade já confeccionava com papéis e massas o presépio que, neste período, era aberto em sua casa às visitações públicas. José Gonçalo contava que principalmente as moças solteiras seguiam fielmente a lenda que se visitassem sete presépios e furtassem uma pedra logo se casariam.

Professor Zezinho, como era conhecido, guardava com carinho um presépio particular para amigos e sua família. Com o falecimento do professor Zezinho, seu sobrinho Arners Sukdorf vem dando continuidade e vida ao presépio cuiabano, para a alegria das crianças e jovens da cidade que não teriam a oportunidade de conhecer a sua arte: o presépio natalino. Professor Zezinho se juntou a Deodato e Lenine e comemoram o Natal no céu.

O senhor José Brasil, já falecido, possuía um presépio muito visitado na capital, ali no bairro Mundéu, onde todos os personagens possuíam movimentos, os quais encantavam adultos e crianças.

A professora Elza Oliveira, moradora e nascida no bairro Porto, na capital, participava sempre da missa do Galo, à meia-noite, celebrada na época na Paróquia São Gonçalo e demais igrejas, onde cantavam inúmeras músicas natalinas, recordou para a historiadora, o cultivo da pitomba nos quintais cuiabanos, fruta que enfeitava muitos presépios seguindo aquela tradição.

Por fim, também não podemos esquecer-nos de Margarida Pinto Figueiredo, aposentada deficiente auditiva, já falecida, filha do morador tradicional Francisco Pinto de Figueiredo e da senhora Argemisa Pinto. Margarida, mesmo surda e muda, estudou e escrevia corretamente e, possuía uma letra belíssima, fabricou seu presépio por 60 anos, na Rua 15 de novembro, quase esquina da beira do rio Cuiabá, do lado direito de quem desce a rua, fazendo com material reciclado, argila e movimentos nos figurantes do presépio onde transmitia aos visitantes seus sentimentos, alegrando os corações e enchendo os olhos de todos com a magia do Natal, ajudados por Tiná e Catuto, que também eram deficientes auditivos. A casa de Margarida ficava em frente à casa do pai de Ivens Scaff, seu Hid Alfredo Scaff. Pena que esses Presépios e esses artesãos não existam mais.

O advogado sulista Baltazar Ulrich, conta que segue a tradição da sua mãe, e quando chegou aqui trouxe o costume da família, porque depois das filhas veio os netos, a razão que continuou para não perder o significado da magia do natal, família reunida, fé e a presença de menino Jesus na Ceia de Natal em nossa vida.

Hoje não temos mais Deodato entre nós e outros. Hoje não corremos presépios! Feliz Natal! Bom Ano Novo!

Neila Barreto é jornalista, mestre em História e membro da AML e atual presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.



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