Gilmar Mendes: Judiciário passa por processo de reengenharia
Em 24 de março de 2004, antes mesmo da promulgação da Emenda Constitucional nº 45, em 8 de dezembro, que implementou a reforma do Judiciário, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) chamou a atenção pelo seu ineditismo jurídico — a despeito da grande repercussão política do caso.
Os ministros da corte entenderam que era preciso limitar o número de vereadores das câmaras municipais a partir de um critério de proporcionalidade. O julgamento foi provocado por uma ação do Ministério Público contra o município de Mira Estrela, no interior de São Paulo, que havia aprovado uma lei aumentando o número de vereadores.
O que estava em jogo era a interpretação da Constituição Federal e de suas emendas — tradicional papel do Supremo. A inovação veio quando os ministros decidiram fixar o critério de proporcionalidade a ser aplicado — legislando, portanto, no vácuo legal — e definir que a regra valeria a partir da próxima legislatura — fixando, assim, uma data para a validade da decisão.
Estavam lançadas as bases para o início da aplicação de dois dispositivos inéditos na mais alta corte do país — que mais tarde passaram a ser chamados de "sentença de perfil aditivo" e "modulação de efeitos da decisão".
Pela sentença de perfil aditivo, o Supremo extrapola sua função de guardião da Constituição para regulamentar dispositivos que nela ainda estão em aberto. Pela modulação de efeitos, impede a retroação da decisão e um possível caos jurídico-institucional que isto poderia causar.
Veio a reforma do Judiciário e os holofotes se voltaram a dois dos novos dispositivos por ela criados: a súmula vinculante e o critério de repercussão geral, que objetivam contribuir para que o Supremo se transforme em uma corte verdadeiramente constitucional ao replicar suas decisões a processos repetitivos, que se multiplicam aos milhares no Judiciário, e reduzir o número de ações por ela julgadas.
Internamente, no entanto, uma revolução silenciosa começou a ser desenhada no Supremo. Em casos de repercussão julgados no pleno, os ministros passaram a debater a aplicação dos dois novos mecanismos, somados a outros que surgiram ao longo do tempo (veja quadro acima). Em comum, eles têm o fato de garantir maior eficácia às suas decisões, economia processual ao Judiciário e segurança jurídica às partes diante das constantes alterações na jurisprudência. Em comum, eles têm também o ministro Gilmar Mendes.
Autor ou co-autor da maioria das inovações em curso no Supremo — e defensor de todas —, o mato-grossense Gilmar Ferreira Mendes é um estudioso do chamado "controle de constitucionalidade" no direito comparado desde muito antes de assumir o cargo de ministro da corte, em junho de 2002.
É apontado como conservador e governista, em parte por ter atuado junto à Presidência da República e à Casa Civil nos anos 90 e de ter estado à frente da Advocacia-Geral da União (AGU) de 2000 a 2002. Mas também por levar em conta, em seus votos, os efeitos práticos das decisões do Supremo, em especial nos casos que envolvem o governo.
Em maio de 2008, Gilmar Mendes, que concedeu a seguinte entrevista ao Valor, assume a presidência do Supremo em substituição à ministra Ellen Gracie.
Valor — Há vários novos mecanismos em discussão ou adotados de forma inédita no Supremo que podem ter impacto em termos de celeridade processual e efetividade das decisões — impacto até maior do que a reforma do Judiciário. De onde surgiram estas novidades?
Gilmar Mendes — Nós temos uma reengenharia institucional do Poder Judiciário que vem se fazendo de forma complexa, também com um diálogo entre o legislador e o Judiciário. A lei da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) — a Lei nº 9.868, que trata também da ação declaratória de constitucionalidade (ADC) — produziu mecanismos bastante modernos no que concerne à prática de uma jurisdição constitucional. Ela introduziu o artigo 27, que permite a modulação dos efeitos de decisões judiciais e a possibilidade de haver audiências públicas para que o tribunal se informe sobre os fatos legislativos — e isto já ocorreu no caso do uso de células-tronco de embriões em pesquisas. E introduziu também a possibilidade, até então vedada, de participação de terceiros interessados — o chamado "amicus curiae" —, que vem dando uma coloração bastante plural ao processo constitucional.
Valor — Estes dois mecanismos vêm sendo bastante usados?
Mendes — Vêm sendo muito usados e com reflexos inclusive nos processos do chamado controle incidental de constitucionalidade (sobre um fato concreto), e não apenas no controle abstrato (por uma ação própria, como a Adin). No Supremo, ocorreu uma situação interessante. A primeira vez que a modulação de efeitos foi usada, não se tratava de um processo em Adin. Foi o caso da redução do número de vereadores nas câmaras municipais, em que o tribunal entendeu que deveria estabelecer uma orientação no sentido de reduzir o número de vereadores, mas que esta decisão impactaria as câmaras de forma bastante radical, porque retiraria dois, três vereadores de uma câmara, com conseqüências inclusive no processo legislativo e em discussões sobre se determinada lei que foi votada com o auxílio daqueles vereadores seria válida ou não. Então o tribunal optou por declarar a inconstitucionalidade no caso, mas aplicá-la somente para a próxima legislatura, em função destes impactos. O segundo caso em que a modulação foi aplicada foi o da progressão de regime de pena em crime hediondo, quando a situação era outra: o tribunal havia declarado a lei como constitucional. E agora, com uma nova composição, entendeu que a lei é inconstitucional. Se o tribunal nada dissesse provavelmente teríamos um número infindável de pleitos de caráter indenizatório: pessoas que diriam que cumpriram pena em regime integralmente fechado porque não fora contemplada a inconstitucionalidade da não-progressão de pena. Então optou por dizer que ele estava certo à época em que declarou a lei constitucional, e que estava certo agora, quando declarou a lei inconstitucional, e portanto não permitiu a retroação da decisão.
Valor — Esta é uma questão bastante discutida na área tributária: a análise dos efeitos das decisões pelo Supremo. Por que o tribunal começou, de repente, a pensar nestes efeitos, buscando uma saída prática?
Mendes — Nós trabalhávamos com uma idéia básica, que é uma ficção, de muitos modelos de jurisdição constitucional, de que a lei inconstitucional há de ser considerada nula. Na prática sabemos que as coisas não se passam bem assim e que é muito difícil fazer esta depuração total, que o próprio sistema cria mecanismos de proteção dos atos já realizados, da coisa julgada, da prescrição e da decadência, que surgem muito em matéria tributária. Portanto, a retroação nunca se deu de forma absoluta. O tribunal está, portanto, obrigado a fazer esta ponderação em vários casos. E em vários casos ela é fundamental, sob pena de não se viabilizar sequer a declaração de inconstitucionalidade. Se se tiver que provocar um caos jurídico ou uma hecatombe econômica, muito provavelmente o tribunal poderia fingir que a lei é constitucional, porque não quer assumir as conseqüências de uma decisão em sentido contrário. Se nós pensarmos isso em perspectiva histórica, sana-se o problema para o futuro, ainda que contemple-se os efeitos verificados no passado. Em questões tributárias, isto ocorre no mundo todo. A amplitude da jurisdição constitucional brasileira — talvez a mais ampla do mundo — com tantas possibilidades de provocação, torna quase inevitável a modulação de efeitos, sob pena de a toda hora nós podermos produzir impasses institucionais.
Valor — A modulação começou a ser usada recentemente. Ela está ligada à mudança de composição do Supremo ou a uma evolução do tribunal no sentido de passar a pensar no impacto de suas decisões?
Mendes — É preciso analisar o conjunto da obra. Já na Constituinte de 1988 discutiu-se a introdução de um dispositivo semelhante ao do artigo 27 da lei da ADI. Isto não ocorreu e o tribunal, depois disso, decidiu vários casos em que contemplou os efeitos das decisões, mas acabou mantendo o princípio da nulidade. Aí veio o artigo 27 da lei da Adin e, a partir daí, o tribunal passou a enfrentar os vários casos. De um lado, a própria iniciativa legislativa contribui para esta nova reflexão. De outro, a nova composição e o novo pensamento que passou a imperar no tribunal, e esta noção específica de responsabilidade institucional da corte quanto à eficácia de suas decisões. Declarar que é constitucional a demissão de funcionário público sem concurso é fácil, mas dizer que isto vai envolver a dispensa de centenas de servidores e desestruturar o serviço público é muito mais difícil. Esta nova técnica da modulação hoje está pacificada.
Valor — Foi pacificada no caso da fidelidade partidária?
Mendes — A fidelidade partidária é uma outra técnica que também o tribunal vem desenvolvendo e que já se manifestou de alguma forma no julgamento iniciado da greve dos servidores públicos e no caso dos vereadores, que eu tenho chamado de sentenças de perfil aditivo — em que o tribunal rompe um pouco com a postura que tradicionalmente chamávamos de legislador negativo e passa a ser também, ainda que provisoriamente, um legislador positivo, permitindo uma regulação provisória de uma dada situação que reclama disciplina normativa ou regulação. No caso das câmaras, o tribunal, de alguma forma, já avançou para este aspecto ao concitar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a fixar o número de vereadores para a legislatura seguinte. E agora, no caso da fidelidade partidária, não se limitou a fixar a fidelidade, mas criou um procedimento para sua aferição no âmbito do TSE, indicando as bases deste procedimento. É uma típica sentença de perfil aditivo.
Valor — É legislar?
Mendes — Ou regular, o nome que você queira dar.
Valor — Mas não está na competência do Supremo legislar, sua competência é julgar. Por que o Judiciário está legislando?
Mendes — A gente não pode ver este tema por uma perspectiva isolada e nem fora do contexto do direito comparado. Esta é uma prática hoje vigente na jurisdição constitucional no mundo. Não se trata de uma invenção brasileira. É uma tendência. Em geral estas atuações se dão em contextos de eventual faltas, lacunas ou omissões do próprio legislador. Ou às vezes em um certo estado de necessidade. A declaração de inconstitucionalidade reclama uma regulação provisória. Para que se profira a decisão de caráter cassatório, tem que se produzir também uma lei para que se faça a transição entre o passado e o presente e regule o presente eventualmente, até que venha a legislação futura. Pode se perguntar se esta atitude pode ser banalizada. Eu diria que não, mas é um dado inevitável do novo contexto institucional que experimentamos.
Valor — Quando o sr. fala que é uma tendência no mundo, está se referindo a que países? Que experiências existem neste sentido?
Mendes — O das cortes constitucionais alemã, italiana e espanhola. Os italianos produziram ao longo do tempo essas chamadas sentenças atípicas, ou sentenças de perfil manipulativo ou aditivo — como é a situação que o tribunal está a desenhar no caso do julgamento sobre o direito de greve do servidor público, que é uma situação muito específica. O que se tem hoje é a possibilidade de regular isto mandando aplicar a lei de greve; uma omissão continuada do Poder Legislativo; e a existência de greve, dentro de um quadro de lei da selva! Este contexto tem levado o tribunal a fazer estas intervenções minimalistas.
Valor — Todas essas inovações no Supremo acompanham uma recente alteração na jurisprudência da corte. O sr. diria que o tribunal era mais conservador e hoje, com a nova composição, é mais liberal? Mudanças de jurisprudência diante de novas composições são comuns em outras cortes constitucionais?
Mendes — Tenho a impressão de que muitas questões já estavam em curso. Não podemos esquecer que um voto vencido é um germe eventual de uma mudança da jurisprudência. Também não podemos perder de vista que o modelo constitucional brasileiro passou por uma verdadeira revolução sobre a Constituição de 1988. Isto mudou o perfil do próprio processo constitucional como um todo e a corte foi percebendo este novo contexto. A nova composição do Supremo acaba por concluir este processo e a perceber a necessidade de introdução destas inovações. Hoje não conheço nenhuma corte de perfil constitucional no mundo que não pratique a modulação de efeitos. Nós éramos, até aqui, entre as jurisdições constitucionais importantes, talvez o único tribunal que não a conhecia.
Valor — Muitas destas inovações foram levadas pelo sr. ao Supremo. Há um trabalho de convencimento dos ministros para discuti-las?
Mendes — Não se trata de um trabalho pessoal ou individual. Há algum tempo estudo este tema, antes mesmo de ser juiz da corte, onde passei a sustentar estas posições. Mas houve também dificuldade no tribunal. A própria constitucionalidade da lei da Adin teve parte de sua regulação questionada — como o artigo 27, que o tribunal já vem aplicando, mas que tem uma argüição de inconstitucionalidade pendente, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Hoje se percebe que isto é um instrumento universal, que interessa a todos. Por ironia, a própria OAB pode vir a pedir a modulação no caso da Cofins dos prestadores de serviço, o que mostra que tudo depende de como as pessoas estão no filme. A modulação não é um instrumento de um dos lados da controvérsia, é um instrumento universal da jurisdição constitucional. Acredito que hoje a nova composição do Supremo é mais aberta a essas inovações menos formalistas.
Valor — Como no caso da adoção do efeito vinculante imediato, que o sr. sugeriu?
Mendes — Propus que nós encerrássemos esta fórmula vetusta, a meu ver, da suspensão de execução da lei inconstitucional pelo Senado. No controle incidental, o Supremo comunica a decisão ao Senado e o Senado suspende a parte considerada inconstitucional da lei — e aí sim, a decisão passa a valer para todos. Esta foi uma fórmula engenhosa adotada em 1934, mas que está totalmente ultrapassada no atual contexto constitucional, em que uma cautelar em Adin tem eficácia "erga omnes" (validade para todos) e uma decisão do pleno do Supremo, às vezes por unanimidade, depois de anos de tramitação do recurso extraordinário e do processo na Justiça, não tem. Sugeri que nós passássemos a adotar a idéia de que ao Senado só cabe publicar a decisão, mas que ela valeria a partir da declaração de inconstitucionalidade do Supremo.
Valor — O sr. assume a presidência do Supremo em maio do ano que vem. Já tem alguma proposta de mudar regras internas?
Mendes — Já há vários estudos em andamento e uma reforma regimental já está sendo discutida na gestão da ministra Ellen Gracie. Este é um processo que terá continuidade.
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