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Cultura
Sábado - 26 de Maio de 2007 às 07:09

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Os homens, você sabe, Benjamim, os homens gostam de inventar histórias e fantasiam muito. Na época em que Xavier se apaixonou por Elenir, eu não o conhecia bem. Freqüentávamos os mesmos ambientes, as famílias se conheciam, mas era só isso. O mundo era menor, ele chamava atenção, talvez eu também, como te disse o Haroldo, mas não creio. Talvez eles reparassem em mim porque, sendo uma moça de boa família, eu fazia faculdade. Em geral só seguiam nos estudos as moças que precisavam trabalhar, isso não era esperado de nós.

Esses dias de hospital. Este quarto verde. É confuso estar parada. Nunca tinha acontecido, nem depois da aposentadoria. Continuei com orientandos, continuei escrevendo e participando de bancas e discussões. Sempre muito o que fazer. Não sou de ficar doente, depois dos partos, no segundo dia já estava de pé, subindo e descendo escada. Muitos dias falando pouco, as memórias vêm de longe, de bem antes dos filhos e, você tenha um pouco de paciência, Benjamim, quero te contar.

Lembro que no meu tempo não era muito bem, no sentido mais besta da palavra, ser estudiosa, buscar estudos, nem para os rapazes, nem para as moças. Era comum a rapaziadinha que não pensava muito em fazer faculdade, ou que fazia meio de qualquer jeito. Quando eu vejo hoje em dia o teu empenho em estudar, batalhar, conseguir uma bolsa e ir para os Estados Unidos fazer mestrado, especialização, esforçar-se para ser um bom profissional, é uma coisa nova. Isso não existiu muito na minha geração, porque eram todos filhos de gentes que tinham ou fazenda, ou banco, ou indústria. Das minhas colegas poucas foram para o Sedes, que era uma faculdade muito boa, onde a minha mãe se formou, foi da primeira turma, e, naquele tempo, era só para moças. A maioria ia fazer Lareira, era um curso, a gente brincava, de espera marido. Elas aprendiam a cuidar da casa, tinham umas aulas de educação sexual pouco claras, por aí ia. As mais chiques, e eram raras, iam fazer Finishing School na Inglaterra ou na Suíça. Eram escolas de acabamento, onde se aprendia a polidez.

A minha diferença foi ter ido para a USP, isso era uma coisa nova. Papai, teu bisavô, era oftalmologista, professor da faculdade, conhecia o dr. Emanuel Kremz de lá, não éramos uma família rica, mas éramos de "boa família" e era isso o que importava. Outro dia eu revi o Great Gatsby na televisão e fiquei pensando nessa diferença. Aquela classe alta norte-americana pós-Primeira Guerra tinha algo de muito selvagem, em muitos sentidos. A sede de diversão, a vaidade e a ostentação. A moça fala "moças ricas não se casam com garotos pobres", como se esse fosse um pensamento comum. Jamais diríamos isso aqui. Não falávamos de dinheiro, víamos, sabíamos, mas não era assunto. A diferença estava em outra parte.

Agora, lá em casa, papai não tinha a menor dúvida de que eu tinha que fazer a faculdade. Isso era uma coisa rara no nosso meio. Mesmo se eu não fosse filha única, sei que ele pensaria da mesma forma, não tinha a ver só com a educação da filha, era uma visão de mundo diferente. Ele dizia, "eu não vou deixar dinheiro para você, mas vou deixar uma boa educação".

Eu gostava de estudar, queria fazer Filosofia, e papai disse que eu podia fazer no Sedes, jamais na USP, se não eu ia perder a minha fé. Eu queria estudar na USP e, diante disso, eu resolvi fazer Letras Clássicas, foi uma ótima opção. Eu estudava muito, gostava demais da faculdade, foi um mundo absolutamente novo para mim, porque eu tinha entrado com sete anos no colégio, estava com dezessete, quando entrei na faculdade, e muito assustada, porque papai dizia: "só tem uma coisa, você vai fazer exame para a USP, trate de estudar muito porque vem de um colégio particular e vai competir com gente de colégio de Estado que é muito forte". Para você ver a mudança absoluta. Agora, de fato, ele não tinha tanta razão, porque como eu tinha tido a oportunidade de estudar bem inglês e francês, entrei em primeiro lugar e fiz muito bem a faculdade. A verdade é que a educação das freiras do Des Oiseaux também era muito boa.

A faculdade foi um ponto de transição importante, todo o ambiente era estimulante, o prédio novo --fui das primeiras turmas da Maria Antonia--, os professores estrangeiros, colegas de outras cidades, de outros meios. A guerra terminara fazia dois anos, os fascistas tinham sido banidos da face da terra, vivíamos em um mundo livre e próspero, necessitado de braços e mentes para ensinar e construir. Há muitas diferenças para a faculdade que meus filhos fizeram e mais ainda para a que você fez. Acho que uma coisa importante, além da transformação do papel da faculdade no tempo, mudança de espaço, a guetização dos departamentos, além disso tudo, havia para nós, no final dos anos quarenta, a diferença do colégio para a universidade. Era uma diferença brutal. Eu vinha de colégio de freiras, nunca havia estudado em uma classe mista e o próprio ensino era muito diverso. A mim pareceu que tinha vivido fechada em um casulo até então, foi um sentimento de liberdade.

Tentei reencontrar esse sentimento quando voltei a estudar, em meados dos anos sessenta, mas, então, a confusão era grande e, cada vez mais, o prazer nos estudos ficou menos coletivo e mais solitário. Em 77, 78, quando Teodoro resolveu viajar, muitos professores estavam ainda exilados, o ambiente era de desmonte e frustração, ressentimento também, sabia que ele não estaria perdendo grande coisa. Talvez por isso considerei o caminho de Teodoro mais corajoso que o dos irmãos.

Esses meninos passaram pelo golpe e a ditadura ainda crianças, imagino que o medo disseminado no país tenha tido algum efeito neles. Sei disso porque vivi a guerra em criança. Havia sempre o perigo dos submarinos alemães, os blackouts que precisávamos fazer como treino. Meu pai ouvindo no rádio as notícias das movimentações das tropas. Apesar de tão longe, sentia a iminência da violência e isso de alguma maneira nos marcou. Na nossa época o bem venceu de forma que nos parecia inequívoca e o mesmo não aconteceu com o sentimento difuso de medo e ameaça que a geração do teu pai viveu. Nós não tínhamos dúvida do nosso papel no mundo, ele havia sido destruído, precisava ser refeito. O espaço de ação que teus tios e teu pai encontraram foi outro.





Fonte: Folha de S.Paulo

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