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Cultura
Quarta - 20 de Dezembro de 2006 às 07:03
Por: Flávia Guerra

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"Eu vi o mundo... Ele começava no Recife", disse o pintor pernambucano Cícero Dias em seu célebre painel, cuja obra tinha o verde do mar de Boa Viagem e dos canaviais da Zona da Mata, a influência poética das águas. Alguns podem dizer que Dias exagerava. O mundo pode não começar e terminar no Recife, mas a vida começa no mangue, um dos mais importantes e diversos ecossistemas que há. No mangue e no encontro de seis rios com o mar, também nasce o Recife.

Não por acaso, foi na capital pernambucana que uma revolução nada silenciosa começou há mais de 15 anos, o manguebeat. Essa revolução praieira, musical, pop, rock, cinematográfica, plástica, teatral, no melhor estilo da afrociberdelia, vem se propagando ainda hoje. É o registro dessa revolução cultural que permeia as páginas do livro Eu Vi o Mundo, cujo lançamento no sudeste só ocorre em janeiro.

A obra traz o valor de imagens históricas, como a primeira formação do mundo livre s/a e o primeiro curta-metragem de Cláudio Assis. Mas também prova que, se a parabólica, escolhida como símbolo dos caranguejos espertos que nadavam com os pés fincados no manguezal mas com as cabeças antenadas no mundo, já é artigo do passado, suas ondas lançadas quando o movimento eclodiu no início dos anos 90 ainda se propagam e regem um exército de muitos novos talentos.

Por isso, o livro também traz o frescor de cenas de bastidores de filmes ainda inéditos, como Deserto Feliz, de Paulo Caldas. "É claro que é um recorte pessoal, pois contém as imagens que nós clicamos desde 1986 até hoje. É um memorial de tudo o que aconteceu nestes anos", conta o fotógrafo Fred Jordão, co-autor do livro ao lado dos também fotógrafos Gil Vicente e Roberta Guimarães, e do jornalista Xico Sá, responsável pelo texto.

De fato. Eu Vi o Mundo não se trata de uma enciclopédia. É mais um diário de bordo das viagens de uma turma que, da lama ao caos e do caos à lama, desorganizou um modelo preestabelecido de cultura pop industrial para reorganizar as próprias referências regionais e globais.

Para tentar compreender o que significou não só o manguebeat mas todo o cenário que propiciou estas mudanças, melhor recorrer a Chico Science. No documentário O Mundo É uma Cabeça, registro certeiro do manguebeat por Bidu Queiroz e Cláudio Barroso, Science afirma: "É uma história que poderia ter saído de qualquer outro lugar do mundo. Mas saiu daqui." Science ainda conclui: "Recife é um lugar como qualquer outro."

Ou não. Isso ficou claro no dia em que os recifenses acordaram com a pecha de viverem na "na quarta pior cidade do mundo", segundo dados oficiais. Era mudar de lugar. Ou mudar o lugar. "E nós tínhamos de começar a fazer alguma coisa. Tudo foi se misturando. Movimentos de rua, hip hop, rap, maracatu, coco, artes plásticas, teatro, cinema. Estava tudo ligado. Recife não é como São Paulo. É muito menor e todos se conhecem. Por isso, todos acabam trabalhando nos projetos de outros amigos. É o que nós chamamos de "brodagem". E foi na brodagem que esta mudança se deu", comenta Jordão, que fotografou os bastidores de shows memoráveis de Science e Nação Zumbi, do mundo livre s/a, de festivais como o Abril pro Rock, dos primeiros filmes produzidos por cineastas que hoje ganham festivais mundo afora.

Organizar esta iconografia não foi tarefa fácil. Assim como o caldeirão cultural que serviu de base sólida, mas maleável para os artistas pernambucanos nestas duas décadas, Eu Vi o Mundo parte da geografia tão peculiar do Recife para explicar o todo. "A idéia surgiu para podermos trazer à tona todo o material que guardamos. E precisávamos situar este movimento geograficamente. Recife é uma cidade que está entre dois trópicos, em uma área grande de manguezal. Temos o maior manguezal urbano do Brasil. E foi no mangue que tudo começou", explica Roberta.

A partir da geografia, torna-se difícil estabelecer fronteiras entre as áreas. É a sinergia, o encontro das águas e dos cérebros que tornam o Recife um ecossistema único. "Está tudo ligado. Mesmo quem saiu daqui continua muito próximo, trabalhando junto. Um músico faz a trilha sonora para um filme. Um diretor atua no filme de outro. Um artista plástico faz a cenografia de um filme ou um clipe. Um ator de um grupo de teatro atua nesses filmes . Esta brodagem garante à cidade uma cena muito coesa", acrescenta Jordão.

Foi exatamente a fusão dessas várias artes que tirou o Recife do marasmo criativo em que a cidade, outrora tão movimentada, encontrava-se desde os anos 70. Como o próprio manifesto Caranguejos com Cérebro afirmava, era necessário desobstruir as artérias recifenses, tão congestionadas por um dito progresso que soterrava seus mangues e sua diversidade ambiental e cultural. Um choque rápido e certeiro devolveu à vida o coração da cultura popular pernambucana e agora ganha o devido registro fotográfico.




Fonte: AE

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