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Cultura
Sexta - 27 de Outubro de 2006 às 00:57
Por: Lauro Lisboa Garcia

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Há bons motivos para considerar que o livro História Sexual da MPB - A Evolução do Amor e do Sexo na Canção Brasileira (Editora Record), de Rodrigo Faour, tem papel desbravador. Como tiveram os transgressores Ney Matogrosso, Marina Lima, Antônio Cícero, Joyce, Rita Lee, Wando, Vanusa, Ângela Ro Ro e Tati Quebra-Barraco no desenvolvimento do tema dentro da música feita nos séculos 20 e 21 no País. Estes são apenas alguns dos retratados no espesso volume de 588 páginas (mais dois encartes de 32), que chega às livrarias no dia 7.

Que sexo é (muuuito) bom, ninguém que pratica ou já praticou tem dúvida. Falar sobre isso, porém, ainda provoca certos rubores aos menos familiares ao assunto. Explicitar o assunto em canções, então, é um âmbito ainda mais espinhoso e já fez muito letrista e intérprete sofrer censura (institucional ou do senso comum) e discriminação no Brasil.

Ainda mais se o personagem em questão for mulher e/ou gay, já que os principais segmentos - samba, rock, música nordestina, hip-hop, enfim quase todos - são extremamente machistas. Mais restrita ainda é a bibliografia sobre sexo e suas diversas formas, derivados e situações correlatas na música brasileira. Daí a bandeira de promessas cumpridas do livro.

Se sexo verbal não faz seu estilo, como dizia Renato Russo em "Eu Sei", vamos tocar no lado documental, mas sem dispensar boas doses de malícia, ora. Escrito em linguagem coloquial e bem-humorada, o volume vem recheado de dados históricos, capas de discos, depoimentos importantes de criadores bem-pensantes da música letrada e citações de versos de 1.300 canções brasileiras.

Isto é fruto de um levantamento minucioso, que vai do lundu, em meados do século 19, ao funk-favela carioca dos 2000. Para facilitar a leitura, que acaba se tornando cansativa, Faour distribuiu o calhamaço em capítulos temáticos e estes, subdivididos em outras partes.

Pelo grau de detalhamento e o montante de referências, o leitor deve imaginar que o autor passou a maior parte de seus 34 anos pensando só naquilo. "Estou há quatro anos com esse tema na cabeça, mas o grosso mesmo do material só produzi em 2005", conta o pesquisador e jornalista, que partiu de uma sugestão da sexóloga Regina Navarro Lins, autora de alguns dos depoimentos mais transparentes e estimulantes do livro.

"Tudo começou em 2001, quando ela me chamou para escrever na revista Muito Prazer uma coluna sobre o amor na MPB e seus diversos temas: motel, traição, separação, etc. A revista durou só dois números, mas a idéia ficou martelando na minha cabeça", conta o autor do biográfico Bastidores - Cauby Peixoto: 50 Anos da Voz e do Mito (2001) e de Revista do Rádio (2002). "Cheguei a pensar que sendo tão jovem não teria cacife para escrever um livro sobre isso. Mas daí comecei a ler para entender como foi a cultura patriarcal, a evolução da mulher, das relações na nossa sociedade", diz.

Depois do balanço bibliográfico, o autor - também responsável pelo recente relançamento da discografia integral de Maria Bethânia em CD - partiu para a seleção das músicas por temas. "Foi difícil começar um livro sobre sexo na MPB falando de amor mal resolvido, mas teve de ser assim, não podia falar de sexo sem falar de amor", diz, embora ressalve que os dois não têm obrigatoriamente de estar relacionados, como se sabe.

Além de sexólogos, antropólogos, críticos e historiadores, Faour entrevistou principalmente os letristas e alguns intérpretes (na maioria cantoras) que foram importantes no aspecto da sensualidade dentro da canção brasileira que repercutiu na mídia. O leitor iniciado pode sentir falta de referências a obras como a de Jorge Mautner - especialmente nas letras de "Encantador de Serpentes" e "Cidadão Cidadã", reveladoras do humor, da ambigüidade e do liberalismo na abordagem das relações gays e além delas - ou o álbum Vermelho, da militante paulista Vange Leonel. Pode-se cobrar também um aprofundamento maior na música nordestina (além do forró de duplo sentido) ou do universo do hip-hop, mais forte em São Paulo do que no Rio, de onde o autor mira sua objetiva.

Faour defende seu ponto de vista, afirmando que, além da perspectiva carioca (daí em parte a proeminência do funk-favela em suas análises), optou por concentrar-se no mainstream da MPB - aquela que tocou no rádio e teve repercussão nacional -, com eventuais citações de curiosidades, para não virar um saco sem fundo.

Corno - A conclusão de todas as análises, depois de repassar mais de um século de evolução entre amores frustrados, libidinagem e transgressões, é que o brasileiro continua irremediavelmente com vocação para "dor de corno". Embora aprecie como poucos a sacanagem, o público ainda consagra a música que retrata o amor romântico, idealizado.

Está mais aberto para as conquistas femininas e de outras ditas "minorias", mas, apesar das revoluções sexuais, ainda não lida bem com situações corriqueiras. Tudo ainda é muito "por debaixo dos panos", e isso se reflete na música, como observam Faour, letristas e sexólogos.

Além do funk, que tem Tati Quebra-Barraco como representante maior da exposição do desejo sexual feminino sem culpa ou meias-palavras, das canções de sucesso recente no mainstream, o autor só se rende a "Já Sei Namorar" (dos tribalistas Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte), e "Amor e Sexo" (Rita Lee/Roberto de Carvalho/Arnaldo Jabor), como representantes da ruptura do mito do amor romântico clássico. O recém-lançado álbum Cê, de Caetano Veloso, farto no assunto, entra na lista de possibilidades, porque ainda não foi assimilado, bem como a escancarada "Poligamia", de Paula Toller, do Kid Abelha.

Até os anos 60 do século passado, a permissividade aparece mais em letras inconseqüentes de marchinhas e sambas carnavalescos, mas ainda assim havia muita tragédia cantada em meio aos risos nos salões de bailes. As conquistas femininas vieram a duras penas, desabrochando em sensualidade na virada dos anos 70 para os 80, com Joyce, Rita Lee, Fátima Guedes e Marina Lima, entre outras, coincidindo com a abertura política. O prazer do sexo sem culpas (a dois ou solitário), a questão da virgindade, a diversidade de, digamos, "cardápio" (só permitida aos homens), menstruação, taras ou homossexualismo - isso tudo era e continua meio tabu. E sobre o atualíssimo sexo pela internet nada representativo ainda rolou nas canções.

Impressiona na seleção de temas do livro o número de letras (muitas delas na voz de cantoras famosas como Carmen Miranda) em que, entre outras humilhações, espancar a mulher aparece como atitude corriqueira na primeira metade do século. Na mesma proporção havia o preconceito racial estampado sem pudor. Quem não se lembra de "O Teu Cabelo não Nega", de Lamartine Babo, de outros carnavais? Era uma tradução da mentalidade da época, justifica-se, mas uma afronta para os padrões politicamente corretos de hoje.

A pornografia e o duplo sentido sempre existiram na MPB e hoje reverberam no discurso libertário e "sujo" do funk. A rejeição deste pela sociedade mais conservadora o autor compara às críticas contra o maxixe no século passado, no capítulo Do Corta-Jaca à Quebra-Barraco - usando no título duas expressões relativas ao ato sexual mais chulo, para demonstrar que o preconceito continua.

Qualidade musical à parte, os compositores da ala brega,como Wando e Odair José, foram mais sinceros e ousados na abertura para o prazer do que os outros lançados ao andar superior. "Enquanto o Roberto (Carlos) prometia o céu, eu dava a cama", diverte-se Odair, referindo-se a um sucesso do Rei nos anos 60. No quesito gay, é de se perguntar por que, tendo tantas cantoras e compositores jogando no setor, há tão poucas canções pertinentes.

O tema compõe um capítulo à parte, de importância ímpar no livro, mas não espere encontrar revelações picantes sobre suspeitos enrustidos. Eles vão continuar na moita. Pioneiros na área, Ney Matogrosso e Ângela Ro Ro, como se sabe, deram as maiores contribuições para romper o preconceito, embora héteros notórios como Chico Buarque, Martinho da Vila, Wando, Djavan e até Noel Rosa tenham sido mais corajosos na abordagem bissexta do tema do que o assumido Cazuza.




Fonte: AE

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