Familiares descobrem um livro inédito de Santos-Dumont
O livro não tem nome -- é uma coleção de artigos extensos, aproximadamente uma dúzia, que foram escritos ao redor de 1902. "Não há data nos papéis, mas a história vai até o Prêmio Deutsch, que Santos-Dumont ganhou em outubro de 1901", contou ao G1 Alberto Dodsworth Wanderley, sobrinho-bisneto do inventor, que está de posse dos originais.
Misturando dados de sua própria trajetória aos conhecimentos que tinha da arte da navegação aérea e suas ciências correlatas, Santos-Dumont oferece lampejos sobre suas inspirações e seus métodos de trabalho. (Para ler trechos, clique aqui.)
"Até hoje, os estudiosos pensavam que Santos-Dumont trabalhava em seus inventos de forma muito intuitiva", diz o físico Henrique Lins de Barros, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, um dos maiores especialistas sobre a vida e a obra do aeronauta brasileiro. "Este manuscrito revela muito do conhecimento por trás desse trabalho. O grau de informação científica que Santos-Dumont demonstra ter aqui mostra que ele não estava trabalhando por intuição, tateando às cegas -- ele sabia exatamente o que estava fazendo."
Obra audaciosa Ao escrever esses artigos, Santos-Dumont claramente tinha por objetivo redigir a obra definitiva sobre o vôo. No primeiro capítulo, "Como me tornei um aeronauta", o inventor relata o que o levou a perseguir a improvável carreira. Estabelecido seu interesse pelo tema, ele passa a costurar tudo que havia para conhecer sobre a história do vôo humano até então -- a começar pela mitologia. O segundo capítulo ("Aerostação mitológica") recupera até mesmo a velha narrativa grega de Ícaro e Dédalo, que teriam construído asas artificiais para fugir do labirinto de Creta.
A partir daí, ele narra os experimentos dos irmãos franceses Montgolfier, que teriam realizado os primeiros vôos tripulados de balão. "É incrível a sensibilidade de Santos-Dumont, ao imaginar e descrever Montgolfier deitado e olhando para as nuvens", diz Wanderley. "Há trechos belíssimos, ele tinha um jeito muito especial de escrever."
Entremeado por dados científicos que denotavam todos os conhecimentos do inventor, Santos-Dumont conclui narrando a evolução do campo até chegar a seus próprios esforços, que culminaram com a vitória no Prêmio Deutsch -- tido como o marco de conquista da dirigibilidade dos balões.
Por alguma razão misteriosa, esse material jamais foi publicado. Pouco tempo depois, em 1904, Santos-Dumont lançaria seu primeiro livro autobiográfico, "Dans l'air" (traduzido para o português como "Os Meus Balões"). Ele ainda lançaria outra autobiografia, em 1918 ("O que Eu Vi, o que Nós Veremos"), e escreveria um terceiro livro (nunca publicado, mas já conhecido pelos historiadores), "O Homem Mecânico", em 1929.
Letra miúda, em francês "Na realidade, é um monte de papel, numerado sequencialmente, de 1 a 312", diz Alberto Dodsworth Wanderley, ao mencionar a descoberta do manuscrito. "Por isso tivemos a noção de que se tratava de um livro."
O material, escrito em francês e a mão, não está completo. Pela numeração, percebe-se que algumas páginas estão faltando. "Mas é muito pouco, coisa de 15 páginas", diz Wanderley. "O que é impressionante, se levarmos em conta que são documentos de mais de cem anos, que até pouco tempo eu nem sabia que existiam."
O livro e outros papéis estavam originalmente na casa de Santos-Dumont em Petrópolis, "A Encantada", de onde foram tirados quando da morte do inventor, em 1932. O material ficou perdido por muitos anos, até ser "redescoberto" num baú de vime no porão de uma das casas da família, no bairro do Flamengo, no Rio. Desde então, o "acervo" passou às mãos de Nelson Freire Lavanère Wanderley e sua esposa, Sophia Helena Dodsworth Wanderley -- os pais de Alberto Dodsworth Wanderley.
Boa parte desse material foi catalogada cruamente por Nelson ao longo dos anos. Ele dividiu as fotos e os inúmeros recortes de jornal em cinco volumes encadernados, por ordem cronológica. Já previamente trabalhado, esse pacote de documentos foi recentemente doado ao Centro de Documentação e Histórico da Aeronáutica (Cendoc), que está organizando o acervo em parceria com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), no Rio de Janeiro.
Com a morte de Sophia Helena, Alberto passou a ser o responsável pelos materiais. A doação dos cinco volumes preparados por seu pai, também morto, já estava acertada, mas havia outros papéis que estavam numa gaveta e não chegaram a ser catalogados. Entre eles havia duas pastas -- uma com os originais do livro, outra com uma tradução feita por Sophia Helena e revisada por Nelson.
Alberto no momento trabalha na digitação e na redação de notas de pesquisa da tradução dos originais. "Completei mais ou menos um terço", diz ele. Assim que concluir o trabalho, passará a procurar uma editora interessada em publicar o livro.
Popstar da aeronáutica Na época em que escreveu o livro "perdido", Santos-Dumont experimentava o auge da fama -- que, ao contrário do que a maioria pensa, ocorreu por seus trabalhos com balões, não com aviões. O inventor brasileiro foi o primeiro a combinar a tecnologia dos balões de hidrogênio (gás altamente inflamável) à dos motores movidos a gasolina (que na época não eram muito confiáveis e soltavam muitas faíscas).
Graças a isso, e contrariando os muitos inventores que o classificavam como maluco, ele conseguiu desenvolver os primeiros balões realmente dirigíveis. O sucesso foi coroado em 19 de outubro de 1901, quando Santos-Dumont conquistou o Prêmio Deutsch -- pequena fortuna de 100 mil francos que seria dada ao primeiro que, com um dirigível, partisse de St-Cloud, nos arredores de Paris, contornasse a torre Eiffel e retornasse ao ponto de partida, percorrendo os 11 quilômetros em até 30 minutos.
Com a vitória, Santos-Dumont, aos 28 anos de idade, foi definitivamente catapultado para a celebridade. Passou a ser ainda mais assediado pela imprensa (que já acompanhava as peripécias do inventor desde o fim dos anos 1890), recebeu cartas de outros grandes inventores, como Thomas Edison (1847-1931) e Guglielmo Marconi (1874-1937), e foi cortejado por grandes autoridades, como Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, que o recebeu na Casa Branca em 1902.
Durante a visita aos ianques, naquele ano, Santos-Dumont também esteve com Edison, e no livro ele reconta sua conversa com o inventor americano. Esse episódio, um dos últimos mencionados na obra inédita, também ajuda a datá-la.
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