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Cultura
Quarta - 23 de Agosto de 2006 às 01:44
Por: Flávia Guerra

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No vale do Rio São Francisco, mais precisamente na divisa entre Minas Gerais e Bahia, região que concentra comunidades carentes, a grande maioria da população nunca se achegou a uma sala de cinema. Em rincões que remetem à obra de Guimarães Rosa, se a arte passa longe das margens do Velho Chico, a carência é onipresente. Em cidades como Manga (MG), Carinhanha, Barra de Parateca e Angico (BA), no médio São Francisco, a população não só não tem condições de fazer uma viagem de cerca de, no mínimo, 12 horas até uma cidade de porte médio mais próxima, como Montes Claros, como nunca vai poder ver uma sala instalada em suas cidades.

Pensando em diminuir este abismo cultural, com o perdão do chavão, nasceu o projeto Cinema no Rio. Em um mês, o barco Luminar e sua tripulação de 20 pessoas (incluindo um médico e dois antropólogos) percorrem mais de mil quilômetros pelo rio, exibindo 11 títulos (cinco curtas e seis longas-metragens) em 26 localidades (13 em Minas e 13 na Bahia). Orçado em R$ 450 mil, o projeto neste ano atingiu cerca de 100 mil pessoas e lotou praças em sessões que chegaram a ter mais de 4 mil pessoas - com patrocínio da Telemar, do BMG e da Petrobras e apoio do Instituto Telemar e da Cemig.

Em regiões em que mulheres ainda lavam roupa na beira do rio para economizar água encanada (que vive faltando, aliás), um saquinho de pipoca tem mais sabor que qualquer pipoca amanteigada com gosto de blockbuster em multiplex das capitais. A viagem do cinema pelo São Francisco começou em julho em Pirapora, no interior de Minas e terminou segunda-feira em Xique-Xique, na Bahia.

É o terceiro ano do projeto criado por Inácio Neves e a primeira vez que ultrapassou os limites mineiros. Algumas vezes separadas muito mais pelas fronteiras invisíveis, outras por sotaques que passam do "uai" para o "oxe". Diferenças culturais vão se acentuando rio acima, mas as sociais e econômicas coincidem. Uma característica persiste: o insistente som das vinhetas da TV, responsável pela visão de mundo de comunidades que não têm acesso a jornal e internet com facilidade.

Manga é a última cidade mineira. Na noite que recebe o Cinema no Rio, a cidade, de 22mil habitantes assiste a Cinema Aspirinas e Urubus e Aboio. O filme de Marcelo Gomes sobre um alemão que vende aspirinas no sertão do Brasil em plena 2ª Guerra, em vilarejos que não possuem nem sequer água e comida suficientes, cala na alma da população. Aboio, de Marília Rocha, trata de assunto que é cotidiano a muitos na platéia: o canto entoado pelos vaqueiros brasileiros para tocar o boi. Antes de cada sessão adulta, um curta infantil é exibido. São as animações do projeto Juro Que Vi, série de desenhos animados que contam mitos e lendas brasileiras como a Iara, o Boto e o Curipira. As crianças adoram.

A tela do Cinema no Rio, aliás, merece menção honrosa. Preocupado em encontrar uma saída mais barata para o projeto, já que uma tela comum exigiria muita infra-estrutura para ser carregada e montada cada dia em uma cidade diferente, Neves, que há mais de dez anos trabalha com produção cultural e projeções de cinema ao ar livre, teve o que se pode chamar de inspiração. "Estava em uma festa infantil e vi um pula-pula. Na mesma hora pensei que poderia fazer uma tela inflável, que eu encheria e esvaziaria todo dia", conta ele. Dito e feito. "Também preciso, para as exibições, de dois projetores de 35 e 16mm, um aparelho de DVD e vídeo, computador e equipamento de som dolby stereo", conta.

A tela, mais que mero suporte, é item simbólico. A equipe do projeto todos os dias filma cenas cotidianas das cidades e entrevista moradores, que contam a história de seus povoados, falam de suas carências e suas riquezas. À noite, antes de cada sessão começar, um pequeno documentário é exibido. Momento catártico. Perceber que o cinema, tão distante, pode estar tão próximo provoca euforia coletiva. A platéia ri envergonhada e maravilhada de si mesma.

O diretor Helvécio Marins Jr. também percorre todas as cidades que recebem o projeto em busca de imagens que contem mais dessas pessoas e suas histórias. "Documentamos estas cidades depois que o Cinema no Rio já passou por elas. Esse material vai virar um documentário e ser exibido no próximo ano nas mesmas cidades", conta ele, que é produtor de Aboio e diretor de Nascente, curta filmado na região do São Francisco que integra a programação.




Fonte: AE

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