Preconceito é um fenômeno social e não biológico, dizem cientistas
Em um dos discursos políticos mais famosos da história, Martin Luther King disse que sonhava que seus quatro filhos pequenos pudessem um dia viver "em uma nação na qual eles não sejam julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter". Era dia 28 de agosto de 1963.
Cinquenta anos mais tarde, o filho negro adotivo de um casal de brancos foi julgado pela cor de sua pele, e não pelo seu caráter, e expulso de uma revendedora da BMW no Rio de Janeiro. Uma semana depois, o jogador brasileiro Daniel Alves, lateral-direito do Barcelona, declarou em sua conta no Twitter ter sido alvo de racismo pela torcida do estádio e disse que esta é uma "guerra perdida" no país.
O racismo persiste dentro e fora do Brasil (97% da população acredita que há racismo no país, segundo a última pesquisa do Datafolha, de 2009) e há muito tempo deixou de ser algo visto como natural e passou a ser combatido. A ciência, intrigada, se pergunta se há razões evolutivas e/ou biológicas que possam explicar esse tipo de comportamento, além dos claros motivos históricos e sociais.
Não há conclusões unânimes, mas a ciência e os especialistas caminham para o entendimento de que o preconceito seja um conceito aprendido. Por definição, o preconceito é uma "opinião formada antes de ter os conhecimentos adequados. Um sentimento desfavorável, concebido antecipadamente ou independente de experiência ou razão". Assim, foge da postura típica dos animais, que só passam a rejeitar aquilo que os prejudica a partir da experiência adquirida. O racismo prevê uma superioridade racial independente da experiência pessoal.
Biológico x social
Classificação em raças
O naturalista sueco Carl Linnaeus (1707-1768) distinguiu quatro raças principais em 1767, que iam do Homo sapiens europaeus (branco, sério, forte) ao Homo sapiens afer (negro, impassível, preguiçoso) – note o juízo de valor de caráter lado a lado com a cor da pele.
Depois, o antropólogo alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) concluiu que eram cinco as raças do mundo, da causasóide (branca) até a etiópica (negra), passando pela mongoloide (amarela), pela malaia (marrom) e pela americana (vermelha) – divisão usada pela ciência até o século 20.
Uma série de filósofos e cientistas defenderam a hierarquização entre as raças, alguns como Josiah Clark Nott, um médico poligenista, que publicou com um colega "Indigenous Races of the Earth", um famoso "estudo" feito no século 19 dos povos brancos e negros, que media o tamanho dos crânios para dizer que os negros teriam o cérebro menos desenvolvido. A noção foi totalmente refutada mais tarde.
Além disso, as pesquisas mais recentes sobre genética afirmam que a divisão em raças é totalmente obsoleta e que a genética genética de todos os indivíduos é semelhante o suficiente para que a pequena porcentagem de genes que se distinguem.
Há uma linha de estudos na área da neurologia que tenta achar componentes cerebrais ligados ao racismo. Em geral, essas pesquisas mapeiam a atividade de uma estrutura cerebral chamada amígdala, ligada a sensações como medo e ansiedade, quando uma pessoa de uma raça vê uma pessoa de outra raça. A amígdala ativada denotaria a sensação temor em relação a pessoas de outra raça – e isso acontece mesmo em pessoas que se declaram livres de preconceito.
"O estudo não pode ignorar que esses efeitos e reações de brancos e negros a imagens de pessoas brancas e negras estão associados justamente a uma construção social do que é ser negro e ser branco", defende Márcia Lima, professora do departamento de sociologia da USP (Universidade de São Paulo).
Um estudo recém-publicado pela pesquisadora Eva Telzer, da Universidade de Illinois, reforça a posição dos sociólogos. Telzer estudou a reação da amígdala em crianças e adolescentes de 4 a 16 anos. O estudo mostrou que a amígdala não responde à questão racial em crianças: a sensação de medo começa a aparecer ao longo da adolescência, o que pode indicar que o racismo é aprendido ao longo da vida.
Já as pesquisas na área de psicologia experimental, que muitas vezes estudam o comportamento dos animais, poderiam encontrar uma explicação para o racismo de bases evolutivas – apesar de não existir, nos animais, traços de preconceito ou discriminação propriamente dita.
"Nós não identificamos em animais um correlato exato ao preconceito, especialmente porque preconceito é uma construção verbal e social típica das culturas humanas", diz Patrícia Izar, professora doutora do departamento de psicologia experimental da USP. "O que existe, tipicamente entre os primatas, os macacos, é um comportamento de proteger o grupo ao qual eles pertencem, em geral um grupo com alto grau de parentesco, contra outro grupo."
Esta, diz Izar, pode ser considerada uma base evolutiva para o preconceito, uma semente remota. Seguindo a mesma lógica, uma tribo poderia ser hostil à outra tribo vizinha, que não é parte de seu grupo, em uma época em que as diferentes populações do mundo não tinham tanto contato entre si.
Com as navegações e as descobertas de outros povos, o mesmo comportamento teria sido aplicado a eles. Além disso, no desenvolvimento da espécie formam-se grupos sociais que vão além das relações de parentesco comuns entre os animais: são os grupos unidos por raça, religião ou etnia, por exemplo, que também podem ter a tendência a hostilizar os que não fazem parte desse grupo.
Geneticista, Sérgio Pena não concorda com estudos evolutivos. "Ao postular a existência de uma natureza humana evolucionariamente moldada para ser etnocêntrica, paroquial, bairrista e chauvinista, esses discursos geralmente terminam por atribuir ao racismo uma inevitabilidade natural. Isso não é verdade. Pelo contrário, as "raças" e o racismo não têm nenhuma justificativa biológica e não passam de uma invenção muito recente na história da humanidade."
"O problema é descontextualizar esses processos científicos do cenário histórico que os está produzindo. Eu compreendo racismo como um fenômeno social e não um biológico As raças não existem, mas a mentalidade relativa às raças foi reproduzida socialmente", concorda Gevanilda Santos, autora de Racismo no Brasil, entre outros livros sobre o tema.
Sendo uma coisa ou outra, a linha evolutiva pode nos dar uma solução. Izar cita a pesquisadora americana Leda Cosmides, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, que estudou a percepção de raça no Brasil por essa linha evolutiva. Ela concluiu que o racismo é um "efeito colateral" ou subproduto da identificação por grupos, que desaparece quando é necessário pertencer a um grupo que independe da raça.
Digamos que a torcida de um time de futebol componha um grupo, e que não haja nenhum pressuposto racial para pertencer a esse grupo. Nesse caso, os torcedores de um time se unem e esquecem o racismo para brigar contra o grupo oposto, o do outro time. A conclusão é muito alentadora: para combater o racismo, bastaria propiciar aos indivíduos alternativas de alianças sociais em que a cor da pele não importa.
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