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Politica Brasil
Sábado - 03 de Junho de 2006 às 10:47
Por: José do Carmo Marques Fontes

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A fé e o misticismo sempre estiveram presentes no cotidiano do povo levergense. Numa época em que o mundo ainda não havia sofrido a influência de charlatões e o arrefecimento da fé, era raro encontrar alguém que não havia recorrido a benzedeiras e benzedores em busca de ajuda espiritual para males corriqueiros.

Não havia quem não acreditasse piamente nas rezas proferidas por essas pessoas que, em nome de um santo, transmitiam a certeza da cura para seus males. Apesar dos remédios indicados por Seu Galego ou Seu Genaldo, as pessoas não dispensavam as rezas milagrosas. Para cada problema, havia alguém a procurar.

Com a chegada da época do frio, era comum casos de caxumba entre crianças acostumadas a brincar livremente nos dias de calor. Logo, era evidente que em dias de friagem alguma perturbação de doença haveria de se manifestar. Então, assim que a brisa fria da manhã tivesse se dissipado, os pais levavam a criança até à casa de Dona Teodora, mulher de Mané Caxerano. Benzer de caxumba requeria um ritual no qual era fundamental um braseiro e uma colher de pau. D. Teodora esquentava a colher na brasa e a colocava no pé da orelha do doente e proferia sua reza. As mãos habilidosas dançavam pelo pescoço da criança ao som de um sussurro incompreensível aos ouvidos de quem quer que fosse.

Talvez até falasse javanês, segundo Luís Carlos Ribeiro. Enquanto isso, dos olhos assustados da resignada criança escorriam filetes de lágrima em conseqüência da colher de pau quente grudada no seu pescoço. Apesar do sofrimento, a cura era garantida. Bastava ir para casa, amarrar um pano no queixo e evitar corrente de vento frio, pois se fosse mulher, a caxumba poderia descer nos seios, e se fosse homem, desceria nos testículos, o que os tornaria estéreis.

Em tempos de fartura de peixe, era inevitável que alguém se engasgasse com espinha. A simpatia era comer uma bola de arroz sem sal, rodar o prato e chamar por São Brás, o santo da garganta. Caso não resolvesse, a alternativa era procurar “Xá Arminda”, a melhor benzedeira para tal problema. Ela fazia a reza e no final dava um pedaço de biju para ser comido na sua frente. Depois de engolido, perguntava se a espinha havia saído. Aquele que mentisse com a intenção de comer mais biju era duramente repreendido, pois ela sabia que sua reza havia surtido efeito. O jeito era ir embora e ser mais cauteloso na próxima pratada de peixe.

Devido às precárias condições sanitárias, o verme que mais atacava as crianças era a temível Ascaris lombricóides, detectada pela perícia de Seu Patrício no posto de saúde. O remédio indicado era tetracloretileno, uma bolinha esverdeada de gosto horrível, fornecido pela SUCAM e a benzeção da Dona Henriqueta. Ela passava óleo de mamona nas costas da criança e com movimentos superficiais e cuidadosos passava “gilete” de cima para baixo para cortar a cabeça das lombrigas. Não era preciso repetir a benzedura, pois em poucos dias a criança já havia recuperado a cor, não apresentava mais dores de barriga e se empanturrava de tarumã, bocaiúva e puxa-puxa ou de bolo de arroz de Tia Sebastiana e Tia Pequenina.

Em caso de contusão, o recomendado era passar banha de peixe-boi e procurar Dona Zefa que, com um novelo de fio e uma agulha virgem, “costurava” a área do machucado. Durante a benzeção, ela perguntava: “Que benzo?” A pessoa respondia: “Carne quebrada, nervo rendido e osso mal-encontrado.” Apesar da seriedade e concentração do momento, era muito engraçado porque, como a resposta era um pouco confusa, a pessoa dizia: “Carne quebrada, nervo rendido, eu sou malencontrado.” No entanto, logo tudo estava nos lugares: carnes, nervos e ossos.

O medo de que a erisipela se tornasse uma doença de maior gravidade levava as pessoas a procurar a benzeção milagrosa de Valé. Ajoelhado aos pés do doente, ele entrava em transe enquanto entoava rezas em nome de São Lázaro. A dor e a quentura da área afetada iam se dissipando e a pessoa que minutos antes chegara de charrete, conseguia voltar a pé para casa.

Numa época sem bolachas recheadas e “skinis”, o lanche era caju, manga, castanha assada, coco, etc. Porém, à noite, por causa de um caroço de goiaba ou um dente cariado, a dor de dente afligia o sono daquele que ali a pouco bateria na casa de Seu Renato em busca de alívio. Ele colocava a mão do lado onde doía o dente e, em silêncio, proferia a sua reza. No outro dia, a pessoa revelava que dormiu bem, pois, antes mesmo de chegar em casa, a dor já havia desaparecido.

A crença em benzeção era tão forte que alguns casos surpreendiam até os mais céticos. Havia benzedores como Seu Paulo de Melo que, além de engasgo e picada de cobra, benzia de bicheira em animal, mesmo que este não estivesse presente. O que a creolina não resolvia, a benzeção fazia os vermes ferverem e despencarem como cajus em dia de vendaval. Outro que surpreendia era Seu Ermelindo que, antes de se tornar evangélico, benzia de impigem e cobreiro com folha de fedegoso que ficava seca em poucos minutos, comprovando a eficácia da reza.

Com a mesma fé e credibilidade, Dona Iria e “Xá” Marcolina benziam de sapinho; Seu Delfino, de dor de cabeça e ar; Seu Fio (Silvio de Amorim), de quebrante e arca caída; D. Vitá, de íngua; Seu Benvindo e Dito de Amorim, de dor de garganta; Seu Lulu Mantero, de ferrada de arraia; e Dona Maria José de Moraes (mãe de Sitó), que benzia de tudo.

Neste 106º aniversário de Santo Antonio de Leverger, toda homenagem a esses saudosos filhos que, iluminados pelo Espírito Santo e sob a proteção de Deus, utilizavam-se de sua espiritualidade e luz para fazer o bem ao próximo a qualquer hora que fossem solicitados.

(*) JOSÉ DO CARMO MARQUES FONTES, Licenciado em Pedagogia e Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professor de Língua Portuguesa, Literatura e Língua Inglesa na Escola Estadual Dr. Hermes Rodrigues de Alcântara.





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