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Cidades/Geral
Quinta - 30 de Março de 2006 às 09:45
Por: Márcio Chaer

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As milhares de leis brasileiras poderiam, hoje, estar todas reunidas em apenas 500 textos. Bastaria consolidar as normas válidas, jogar fora os trechos já superados ou revogados e suprimir as regras consideradas inconstitucionais. Mas o Congresso não se animou com a idéia. Como sói acontecer e para frustração do autor da lei, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes. Mas se tem algo de que Gilmar não pode reclamar é de fracassos no campo legal. Foi ele quem produziu o anteprojeto da Emenda Constitucional que criou os Juizados Especiais Federais e, mais tarde, a lei que regulamentou seu funcionamento.

Gilmar tem aqueles traços pouco simpáticos do professor impopular, que dá notas baixas, mas que é o verdadeiro educador. É dele, por exemplo, a autoria intelectual da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), o instrumento que elimina dúvidas quanto à constitucionalidade de uma lei. Mais tarde, ele produziria a regulamentação dessa ação e também da estrela que virou o maior acontecimento na vida recente do STF: a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). Outra concepção do ministro foi a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) — um instituto que veio para invalidar leis erradas, criadas antes de 1988 ou leis municipais que trombam com a Carta Federal, o que tapou a brecha deixada pelas Adins — que só ataca leis federais e estaduais posteriores a 1988.

Esse conjunto de ações históricas tem um papel especial na vida do STF. É que em vez de julgar milhares de ações que contestam a constitucionalidade de uma lei, caso a caso, o tribunal pode com uma só decisão raspar a norma do ordenamento jurídico brasileiro. Ou seja: racionaliza o processo. É criativo. Afinal, doutorou-se na Alemanha. E depois trouxe de lá inovações interessantes para o direito brasileiro que deram certo por lá.

Mesmo sem ser deputado ou senador, Gilmar pôde legislar a partir dos cargos que ocupou na área jurídica do governo. Como advogado-geral da União, por exemplo, ele criou uma nova forma de defender o Estado. No Supremo há quase 4 anos, o ministro continuou arquitetando soluções racionalizadoras. A ponto de merecer de seu colega Celso de Mello, ferrenho adversário das Medidas Provisórias que o governo passado editou em profusão, um qualificativo que, pelo autor do reconhecimento é significativo: “O ministro Gilmar é hoje o grande doutrinador do STF”. As páginas deste site testemunham nesse sentido.

Frasista provocador, esse mato-grossense de Diamantino, cidade onde seu irmão é prefeito, cunha expressões instigantes. Aos paradoxos do sistema judicial ele apelidou de “manicômio judiciário”. Às manobras que recorrem os juízes para conter o excesso de processos ele chama de “jurisprudência defensiva”. A resistência à atualização do ordenamento jurídico ele carimbou como “interpretação retrospectiva”. Aos truques daqueles que cuidam para que certos dilemas não sejam solucionados para explorá-los em seu favor ele batizou de “doenças cultivadas”. E para aqueles que durante os anos sufocantes da ditadura calaram, para mostrar hoje uma coragem discursiva incompatível, ele lhes concede uma irônica “coragem retroativa”.

Na entrevista que se segue, a quarta de uma série com os ministros do STF, feita pelo site Consultor Jurídico para o jornal O Estado de S.Paulo, Gilmar Mendes narra sua epopéia e explica os motivos de suas iniciativas.

ConJur — O que muda no STF com a renovação de seus quadros?

Gilmar Mendes — Na verdade, o Tribunal está em de transição desde a promulgação da Constituição de 88, que trouxe novos institutos e o desafio de novas interpretações. A renovação dos últimos anos tem contribuído para a mudança de entendimento em relação a temas que se solidificaram, de acordo com interpretações retrospectivas. Mas não se pode esquecer que, nestes últimos 17 anos de nova prática constitucional, produzimos também uma nova doutrina, que agora influencia esse processo de revisão da jurisprudência. Portanto, é uma ação concertada que envolve os antigos e novos atores, a evolução da doutrina e a própria visão das partes. É um conjunto de fatores.

ConJur — Ou seja, a renovação serviu para acelerar o processo de mudança?

Gilmar Mendes — É evidente. Os novos integrantes já chegaram embebidos das reflexões sobre o novo contexto dogmático e doutrinário e sobre as críticas desenvolvidas a propósito das orientações tradicionais da Corte. Não surpreende que a antiga composição estivesse mais comprometida com a doutrina anterior e fizesse, em parte, uma leitura com os olhos do passado. A nova geração chega descolada da amarração anterior, o que contribui para consolidar a nova interpretação e levá-la adiante. Não se pode ser simplista e enfrentar a renovação da doutrina da Corte como se fosse uma troca de lençóis ou dos móveis da casa.

ConJur — O senhor participou da criação de diversas leis que hoje estão no centro do sistema judicial. Qual a idéia geral, a intenção que norteou suas propostas?

Gilmar Mendes — Cada proposta teve o seu contexto, mas, de forma geral, sempre houve e ainda há uma forte necessidade de se modernizar e racionalizar o sistema. Nesse esforço de renovação e modernização, criamos, no governo Collor, uma espécie de check-list para a criação de novas leis (em vez de dizer “revogam-se as disposições em contrário”, ao pé de cada lei nova, o legislador teria que indicar que leis ou dispositivos foram revogados, por exemplo). Essa mesma preocupação — de modernização e de racionalização — norteou as iniciativas no sentido de reforçar o papel do STF como órgão de efetivo controle constitucional.

ConJur — Qual foi sua meta ao conceber o projeto de lei que regulamentou as ações Direta de Inconstitucionalidade, a Declaratória de Constitucionalidade e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental?

Gilmar Mendes — A criação da ADC deu-se com a Emenda Constitucional nº 3 Foi motivada pela necessidade de aperfeiçoamento do modelo de controle abstrato. O objetivo dos projetos foi de consolidar as conquistas obtidas pela jurisprudência do Supremo e a introdução de mudanças relevantes, como aquela referente à eficácia ex-nunc (não retroativo) das decisões de inconstitucionalidade e à própria regulação da ADPF, que reforça o modelo de perfil concentrado.

ConJur — A criação dos Juizados federais também veio nesse sentido?

Gilmar Mendes — Esse projeto decorreu de decisão pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso, que se comprometeu com o ministro Jobim, que já estava no STF, a encaminhar projeto de Emenda para disciplinar as competências para julgar pedidos de Habeas Corpus no STJ e no STF. Na ocasião, o presidente recomendou que fizéssemos algo no sentido da democratização do acesso à justiça e propusemos, então, que fosse autorizada a criação dos JEF´s. O propósito era democratizar o acesso à justiça e a celeridade das decisões.

ConJur — Mas os juizados especiais já não estavam previstos desde 1988?

Gilmar Mendes — Os juizados especiais comuns, sim. Os federais, não. A noção de que se poderia utilizar a fórmula em nível federal só foi introduzida com a Emenda Constitucional nº 22, de 1999. Posteriormente, participei da formulação, juntamente com o STJ, da regulamentação da Lei nº 10.259, agora na condição de Advogado-Geral da União. Do ponto de vista de democratização do acesso à justiça, essa foi, sem dúvida, a mais importante inovação do sistema jurídico brasileiro pós-88. Causas que antes consumiam 10, 12 anos para um desenlace passaram a ser decididas em menos de 1 ano.

ConJur — Essas mudanças têm algo a ver com o fenômeno que se deu na redemocratização, em que o governo federal passou a ser alvo de vultosas indenizações, os chamados esqueletos, em que a União sistematicamente saía derrotada das disputas?

Gilmar Mendes — Há um cenário importante a ser examinado. A Constituição de 88 retirou do Ministério Público Federal a incumbência de defender a União. Ao mesmo tempo em que se intensificaram as demandas contra a União. Ninguém tinha mais medo de litigar contra o Estado. Com exceção da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, não havia um órgão para assumir a defesa da União naquele contexto claramente adverso, onde havia uma montanha de ações (sobre correção monetária, planos econômicos e indenizações contra o Estado, etc.), que já não dispunham da estrutura nem do know-how do MP. Não foi por acaso que o governo tentou organizar e estruturar a AGU com base nos procuradores da fazenda e os colocou diretamente na defesa da União. Era notória a desigualdade de forças e a consolidação da AGU consumiu muito esforço e energia. Era preciso consertar o avião em pleno vôo.

ConJur — Como foi a transição de pessoal?

Gilmar Mendes — Foi difícil, naquele momento, pois os próprios advogados públicos tinham um ethos equivocado. Entendiam que sua função não era socialmente relevante. A opinião pública emprestava significado decisivo às atividades do MP, especialmente, e atacava as posições governamentais. Havia uma fantasia: enquanto o advogado privado ou o procurador ganhava toda a mídia, o advogado do governo era satanizado. Era preciso encontrar um novo ethos, o da defesa do interesse público e do patrimônio público. O debate interno ajudou a mostrar que o ethos de defesa do interesse público passa pela idéia da defesa do patrimônio público. E que, nesse contexto, o advogado público tem importante papel social.

ConJur — Essa torcida contra o governo seria um reflexo condicionado adquirido no regime militar?

Gilmar Mendes — Chamei essa orientação de processo de antropomorfização do Estado. Ou seja: confunde-se a União com o eventual ocupante do poder. Essa visão consolidou-se durante o regime militar e prosseguiu no processo de redemocratização. Uma derrota eventual da União era interpretada como derrota do governo, especialmente do governante. Os próprios partidos de oposição manipulavam essa noção, instrumentando o Ministério Público, institucionalmente, para suas causas. Por outro lado, grupos menos escrupulosos aproveitavam-se dessa “ideologia” para praticar o que chamei de “estelionato pela via judicial” — algo que continua a ocorrer e que precisa ser combatido por todos nós.

ConJur — O objetivo era facilitar a defesa do Estado?

Gilmar Mendes — Para reforçar a defesa do patrimônio público era preciso modernizar as leis processuais, criar medidas de suspensão de liminares e ampliar os regimes de contra-cautela. A proteção do Estado passava pela guerra de suspensão de liminares, o que foi muito aplicado no processo de privatização e de suspensão de grandes condenações. Essa ideologia anti-estatal, no campo jurídico, levava a uma generosidade exagerada na concessão de liminares e tutelas. Por isso foi preciso construir um regime de contra-cautelas.

ConJur — Como foi a reação do Ministério Público e da advocacia privada a essas medidas?

Gilmar Mendes — Em geral, muitas críticas. Especialmente o 2º governo FHC: intensa contestação e embates envolvendo sérias questões econômicas, como a recomposição do FGTS e a crise do racionamento (apagão). Foi feito um enorme esforço para reestruturar o braço mais deficitário da advocacia pública, que residia nas advocacias das autarquias e fundações. Aqui talvez tenha havido a maior resistência e incompreensão por parte daquele grupo de beneficiários. Uma das primeiras medidas que adotei na AGU foi assumir diretamente a representação judicial de cerca de 100 autarquias. Isso foi desorientador para aqueles que atuavam e se beneficiavam desse estado de vulnerabilidade.

ConJur — Como é transformar-se de principal ator da defesa da União para a posição desejavelmente neutra de ministro do STF?

Gilmar Mendes — Exceto os ministros oriundos da magistratura, todos os demais atores do STF vêm da atividade política, o que supõe atividade partidária — portanto, parcial — ou da atividade doutrinária e da advocatícia, o que também supõe uma pré-compreensão favorável ao interesse de parte. É elementar que são funções diferentes e que, portanto, exigem posturas diferentes. Mas isso não significa que essas pessoas integradas em processos especiais da vida pública estarão comprometidas indelevelmente com as causas que defenderam ou que não poderão ser imparciais na nova função que terão de desempenhar. O próprio múnus do juiz, o seu perfil institucional, obriga a que se adote uma visão de neutralidade e distanciamento em relação a posições antes defendidas. Por outro lado, as próprias regras processuais do impedimento e da suspeição permitem o distanciamento institucional nos casos mais notórios, capazes de gerar suspeita ou tendenciosidade. E não esqueçamos que a jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal será sempre um paradigma para medir a atuação do novo juiz.

ConJur — Um dos dramas do Judiciário é o cipoal de leis que chegam a tratar do mesmo assunto de forma diversa. Por que não prosperou o programa de Consolidação das Leis Brasileiras?

Gilmar Mendes — A proposta foi feita na LC nº 107/2001, quando se atualizou a LC nº 95/1998. O objetivo era o de enxugar as leis, para consolidar as centenas de milhares de leis em cerca de 500, o que permitiria identificar as leis e normas vigentes. Essa tarefa é impossível hoje. Esse trabalho iniciou-se com o ministro Ives Gandra Filho, mas, infelizmente, com os percalços do processo legislativo, esse projeto não se desenvolveu. Mas tenho ainda a expectativa de que o programa seja resgatado em um futuro próximo.

ConJur — Como o senhor vê a forma como a imprensa noticia as decisões judiciais?

Gilmar Mendes — Há falhas de compreensão e há problemas de comunicação. Mas há situações que projetam uma imagem esquizofrênica do tribunal. Falo da confusão que se faz entre decisões monocráticas e colegiadas. O cidadão lê no jornal que um dia o Supremo decidiu algo num sentido e em outro em sentido totalmente diverso. E depois o pleno chega a uma terceira conclusão. Sem falar na divergência entre tribunais. Isso tira um pouco a confiabilidade na justiça.

ConJur — Como o senhor examina a questão da liberdade de expressão nesse contexto em que se multiplicam as ações de danos morais contra a imprensa?

Gilmar Mendes — Tenho a impressão de que essas ações fazem parte do aprendizado democrático. Vínhamos de um processo de liberdade restrita e passamos para uma liberdade amplíssima. A partir daí é provável que os atores envolvidos nesse quadro de protagonismo se vejam obrigados a levar a questão ao Judiciário. Não surpreende que, com a expansão da liberdade de imprensa, haja também um processo mais intenso de judicialização das controvérsias ligadas ao direito à honra e à intimidade. Parece óbvio que tenha tido esse desenvolvimento. Temos que conviver com esse aprendizado e desenvolver a compreensão do novo paradigma. De um lado, o alvo da crítica deve aprender a distinguir entre a crítica e a ofensa. Crítica veemente não é injúria nem difamação. Por outro lado, a imprensa tem que desenvolver cuidados básicos, colher informações precisas e não fazer imputações indevidas. Ao juiz cabe ter critérios razoáveis para arbitrar essa natural tensão e conflito de direitos. Quanto à legislação é provável que, nesse contexto de conflito inevitável, uma lei de imprensa adequada tivesse, talvez, uma função, além de pedagógica, protetora da liberdade de expressão, desde que devidamente conformada. Ela traria uma visão especial da atividade jornalística, que, queiramos ou não, oferece grandes riscos de que equívocos de informação sejam tipificados como delitos contra a honra. Um aspecto a ser reexaminado é a demora e a enorme dificuldade para se exercer direito de resposta — o que acaba dando ensejo a tantas ações de perdas e danos.

ConJur — O que representou para a história do STF o ministro Moreira Alves?

Gilmar Mendes — Moreira Alves foi juiz exemplar da Corte do STF e muito provavelmente a história lhe fará justiça, reservando-lhe um lugar de destaque entre os maiores juizes do STF de todos os tempos. A invulgar inteligência, capacidade de trabalho, acuidade e sofisticação doutrinária permitiram que ele tivesse decisiva participação no desenvolvimento do direito público brasileiro e, especialmente, da jurisdição constitucional, onde teve papel decisivo na construção desse modelo de controle de constitucionalidade. Tanto é que organizei uma obra com o título de “Moreira Alves e o Controle de Constitucionalidade no Brasil”. Ao mesmo tempo, foi um juiz cônscio de suas responsabilidades e extremamente corajoso.

ConJur — Mas ele foi mais conservador do que inovador. Ele não representou uma espécie de âncora na evolução da doutrina no tribunal?

Gilmar Mendes — Certamente Moreira Alves tem uma pré-compreensão muito bem definida do universo social e do direito e nunca a escondeu. Mas também tinha a noção da responsabilidade e do compromisso da Corte com o direito e com o desenvolvimento institucional. O simples papel que ele desenvolveu no Controle de Constitucionalidade parece suficiente para mostrar que não se tratava de um conservador no sentido vulgar do termo.

ConJur — Como o senhor descreve a contribuição de seus colegas para a doutrina que se está construindo hoje no STF?

Gilmar Mendes — O ministro Pertence é um jurista de enorme talento e tem dado contribuições importantíssimas tanto para a construção do modelo de jurisdição constitucional, quanto para a moderna concepção dos direitos fundamentais desenvolvidos no Tribunal. É extremamente relevante o papel desempenhado por Celso de Mello na jurisprudência do Tribunal, especialmente no contexto dos direitos fundamentais. É impossível estudar, por exemplo, o papel das CPI´s no contexto institucional brasileiro sem se referir aos votos do ministro Celso de Mello. É também muito relevante a atuação de Marco Aurélio na jurisprudência do Tribunal, inclusive na prolação de votos vencidos, que, pouco a pouco, vão se transformando em jurisprudência consolidada, como ocorreu no caso dos crimes hediondos. Reputo também importante o papel desempenhado por Jobim, especialmente nas difíceis questões no âmbito tributário e financeiro, nas questões econômicas em geral e nas questões puramente políticas. Ademais, não se pode perder de vista que, muito provavelmente, foi ele o principal ator da reforma do judiciário, seja como autor inicial das propostas, seja, depois, como articulador político do governo FHC e como coordenador das discussões no âmbito do Congresso Nacional.





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