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Obras de Lygia Clark em exposição na Pinacoteca
São Paulo - A história da arte costuma apresentar Lygia Clark (1920-1988) como uma figura fracionada, que em um determinado momento deixa a arte para tornar-se terapeuta, uma mulher que após um aprofundamento das experiências construtivas do período neoconcreto abandona o campo da criação estética por experimentações psicanalíticas e espirituais heterodoxas. A fim de dissipar essa visão reducionista da obra daquela que hoje é considerada uma das mais importantes criadoras brasileiras e um dos grandes nomes da vanguarda internacional, a exposição Lygia Clark - do Objeto ao Acontecimento apresenta ao público novo e instigante olhar para esse processo de busca de libertação criativa e afetiva por meio de estímulos sensoriais.
Enquanto alguns valorizam as experiências da fase neoconcreta, outros voltam sua atenção para a radicalização que se dá a partir da década de 60, quando ela vai pouco a pouco rompendo com os paradigmas tradicionais da arte e propõe relação nova com o objeto, que vai perdendo sua aura de valor inquestionável, torna-se arte apenas quando em ação com o espectador e posteriormente é transformado em elemento de mobilização da sensibilidade e libertação criativa. É exatamente essa última fase - que se desenvolveu em 26 anos de pesquisa - que vem despertando crescente interesse no circuito de arte internacional, pelo menos desde que a obra de Lygia começou a ser resgatada com a participação especial na Documenta de Kassel e a grande retrospectiva organizada também em 1997 pela Fundação Tapiès. Desde então seu trabalho está presente com destaque em 15 a 20 exposições internacionais por ano.
E, no entanto, na grande maioria dessas mostras ocorre um fenômeno frustrante: a impossibilidade de dar conta da radicalidade do processo desencadeado pela artista num espaço expositivo tradicional. Normalmente a opção recai sobre dois modelos. De um lado, as mostras tradicionais, que colocam em vitrines os Objetos Relacionais - como Lygia chamou as peças que usava para tocar o corpo de seus pacientes, como numa espécie de “exorcismo” nas sessões de terapia que começou a realizar a partir de 1976 quando retorna ao Brasil após temporada na França - devolvendo-os ao lugar passivo ocupado pelos objetos de arte num museu, causando efeito estranho essa museificação de coisas aparentemente banais - já que adquirem significado apenas em relação com o outro - como pedras, sacos plásticos cheios de ar e água ou tubos de plástico ordinário. De outro estão as tentativas de transferir para uma sala expositiva a força mobilizadora das ações de Lygia, como se fosse possível recriar aquele momento de forma artificial. Aí, em vez da fetichização do objeto temos uma performance vazia, jogo lúdico que pouco acrescenta até mesmo para os participantes da ação.
A exposição que será inaugurada amanhã na Pinacoteca (já exibida com sucesso no Museu de Nantes como parte do Ano do Brasil na França) tenta romper com esses dois modelos propondo diálogo com as pessoas que viveram esse processo com Lygia e também com críticos e especialistas (filósofos, psicólogos, artistas, etc.) capazes de elucidar momentos importantes desse mergulho radical em que se busca tornar vida e arte uma coisa só. A mostra segue os passos do modelo utilizado mais recentemente na Europa de resgate da arte experimental dos anos 70 por meio da exibição de documentos (como arquivos, documentação e fotos).
Evidentemente, também estão lá esculturas e pinturas produzidas pela artista nos 13 anos iniciais de sua carreira: suas experiências com a linha orgânica, quebra da moldura, os célebres Bichos, Trepantes, Obras Moles, etc. E até uma reconstituição da instalação A Casa É o Corpo, concebida para a retrospectiva de 68 na Bienal de Veneza. Também haverá espaço para o público experimentar seus trajes e objetos. Afinal, a idéia é ver a obra de Lygia ao longo de seus quase 40 anos de pesquisa. Nem artista nem terapeuta. Lygia Clark gostava de apresentar-se como pesquisadora, alguém que investiga as questões que a mobilizam e depois segue em frente, rompendo barreiras e enfrentando novos desafios.
Mas a grande inovação - que constitui a base inicial desse projeto são os depoimentos. Para captar o que chama de significado vivo da obra de Lygia, de “memória encapsulada”, que nos permite não apenas conhecer melhor a obra dela como elucidar a partir daí o presente, Suely Rolnik iniciou há três anos a garimpagem das pessoas que poderiam elucidar aspectos do pensamento e ação da artista que estavam ficando esquecidos ao longo desse processo de institucionalização da sua obra. “Meu intuito foi provocar mergulho na memória das sensações”, conta ela. Ao todo foram entrevistadas 56 pessoas na França e no Brasil (33 das quais estão na exposição). As conversas duram de 40 minutos a duas horas e contemplam os mais diferentes aspectos da trajetória de Lygia e da relação de seus contemporâneos com suas experiências. Suely - que conviveu intimamente com Lygia a partir da década de 70 e a quem dedicou sua tese de doutorado -, lembra que os alunos que a artista teve na Sorbonne comentam como foram estimulantes as experiências coletivas de mobilização do corpo promovidas por ela, mas também falam muito da raiva que sentiam ao longo do processo, “pela angústia que esta mesma experiência lhes provocava ao se verem assim confrontados a seus fantasmas, fora de um contexto onde tivessem condições para elaborá-los”.
Angústia essa que também teve seus efeitos sobre a artista, que tomou consciência de que não adiantava mobilizar esses fantasmas sem buscar tratar essas feridas e alguns anos depois passa a tratar as pessoas de maneira individual, seguindo um esquema que mais se assemelha a uma sessão de psicanálise. Dentre seus primeiros “casos” estão as prostitutas da rua em que morava. Suely encontrou duas delas e registrou seus depoimentos. Mas a maioria das pessoas tratada por Lygia fazia parte da intelectualidade e do mundo artístico carioca da década de 70, marcadas pelo movimento de contracultura e pela repressão da ditadura militar.
Como esse material é complexo e extenso, uma edição com dois minutos de cada depoimento pode ser vista logo na entrada da exposição. Assim como essas conversas foram o ponto de início da pesquisa que levou à exposição, são elas que recebem o visitante. “Queria que o espectador entrasse na exposição ouvindo essas vozes heterogêneas, essa memória com poder de convocar um efeito no receptor e à luz disso dar maior sentido à documentação”, afirma a curadora e psicanalista.
O trajeto da mostra é o inverso do cronológico; vai da dimensão terapêutica (sempre vista como desdobramento da obra artística) aos primeiros trabalhos. São muitas as fases que se desdobram nesse percurso, dando corpo ao que Pierre Fédida - que foi seu analista nos anos em que viveu em Paris - resume em seu depoimento: “Lygia vivia na insegurança das categorias.” Insegurança essa que a obrigava a seguir em frente, a desdobrar permanentemente suas pesquisas, a tirar as conseqüências e seguir o rumo que seu próprio trabalho indicava. Primeiro desestabilizando o estatuto do objeto, do artista e do receptor, depois defendendo o “singular estado de arte sem arte”. “Ela tinha consciência da violência da vida, o quanto ela te obriga a criar”, resume a curadora.
Lygia Clark. Pinacoteca do Estado. Pça. da Luz, 2, centro, 3229-9844. 10h/18h (fecha 2.ª). R$ 4 (sáb. grátis). Até 26/3. Abertura amanhã, às 11h
Enquanto alguns valorizam as experiências da fase neoconcreta, outros voltam sua atenção para a radicalização que se dá a partir da década de 60, quando ela vai pouco a pouco rompendo com os paradigmas tradicionais da arte e propõe relação nova com o objeto, que vai perdendo sua aura de valor inquestionável, torna-se arte apenas quando em ação com o espectador e posteriormente é transformado em elemento de mobilização da sensibilidade e libertação criativa. É exatamente essa última fase - que se desenvolveu em 26 anos de pesquisa - que vem despertando crescente interesse no circuito de arte internacional, pelo menos desde que a obra de Lygia começou a ser resgatada com a participação especial na Documenta de Kassel e a grande retrospectiva organizada também em 1997 pela Fundação Tapiès. Desde então seu trabalho está presente com destaque em 15 a 20 exposições internacionais por ano.
E, no entanto, na grande maioria dessas mostras ocorre um fenômeno frustrante: a impossibilidade de dar conta da radicalidade do processo desencadeado pela artista num espaço expositivo tradicional. Normalmente a opção recai sobre dois modelos. De um lado, as mostras tradicionais, que colocam em vitrines os Objetos Relacionais - como Lygia chamou as peças que usava para tocar o corpo de seus pacientes, como numa espécie de “exorcismo” nas sessões de terapia que começou a realizar a partir de 1976 quando retorna ao Brasil após temporada na França - devolvendo-os ao lugar passivo ocupado pelos objetos de arte num museu, causando efeito estranho essa museificação de coisas aparentemente banais - já que adquirem significado apenas em relação com o outro - como pedras, sacos plásticos cheios de ar e água ou tubos de plástico ordinário. De outro estão as tentativas de transferir para uma sala expositiva a força mobilizadora das ações de Lygia, como se fosse possível recriar aquele momento de forma artificial. Aí, em vez da fetichização do objeto temos uma performance vazia, jogo lúdico que pouco acrescenta até mesmo para os participantes da ação.
A exposição que será inaugurada amanhã na Pinacoteca (já exibida com sucesso no Museu de Nantes como parte do Ano do Brasil na França) tenta romper com esses dois modelos propondo diálogo com as pessoas que viveram esse processo com Lygia e também com críticos e especialistas (filósofos, psicólogos, artistas, etc.) capazes de elucidar momentos importantes desse mergulho radical em que se busca tornar vida e arte uma coisa só. A mostra segue os passos do modelo utilizado mais recentemente na Europa de resgate da arte experimental dos anos 70 por meio da exibição de documentos (como arquivos, documentação e fotos).
Evidentemente, também estão lá esculturas e pinturas produzidas pela artista nos 13 anos iniciais de sua carreira: suas experiências com a linha orgânica, quebra da moldura, os célebres Bichos, Trepantes, Obras Moles, etc. E até uma reconstituição da instalação A Casa É o Corpo, concebida para a retrospectiva de 68 na Bienal de Veneza. Também haverá espaço para o público experimentar seus trajes e objetos. Afinal, a idéia é ver a obra de Lygia ao longo de seus quase 40 anos de pesquisa. Nem artista nem terapeuta. Lygia Clark gostava de apresentar-se como pesquisadora, alguém que investiga as questões que a mobilizam e depois segue em frente, rompendo barreiras e enfrentando novos desafios.
Mas a grande inovação - que constitui a base inicial desse projeto são os depoimentos. Para captar o que chama de significado vivo da obra de Lygia, de “memória encapsulada”, que nos permite não apenas conhecer melhor a obra dela como elucidar a partir daí o presente, Suely Rolnik iniciou há três anos a garimpagem das pessoas que poderiam elucidar aspectos do pensamento e ação da artista que estavam ficando esquecidos ao longo desse processo de institucionalização da sua obra. “Meu intuito foi provocar mergulho na memória das sensações”, conta ela. Ao todo foram entrevistadas 56 pessoas na França e no Brasil (33 das quais estão na exposição). As conversas duram de 40 minutos a duas horas e contemplam os mais diferentes aspectos da trajetória de Lygia e da relação de seus contemporâneos com suas experiências. Suely - que conviveu intimamente com Lygia a partir da década de 70 e a quem dedicou sua tese de doutorado -, lembra que os alunos que a artista teve na Sorbonne comentam como foram estimulantes as experiências coletivas de mobilização do corpo promovidas por ela, mas também falam muito da raiva que sentiam ao longo do processo, “pela angústia que esta mesma experiência lhes provocava ao se verem assim confrontados a seus fantasmas, fora de um contexto onde tivessem condições para elaborá-los”.
Angústia essa que também teve seus efeitos sobre a artista, que tomou consciência de que não adiantava mobilizar esses fantasmas sem buscar tratar essas feridas e alguns anos depois passa a tratar as pessoas de maneira individual, seguindo um esquema que mais se assemelha a uma sessão de psicanálise. Dentre seus primeiros “casos” estão as prostitutas da rua em que morava. Suely encontrou duas delas e registrou seus depoimentos. Mas a maioria das pessoas tratada por Lygia fazia parte da intelectualidade e do mundo artístico carioca da década de 70, marcadas pelo movimento de contracultura e pela repressão da ditadura militar.
Como esse material é complexo e extenso, uma edição com dois minutos de cada depoimento pode ser vista logo na entrada da exposição. Assim como essas conversas foram o ponto de início da pesquisa que levou à exposição, são elas que recebem o visitante. “Queria que o espectador entrasse na exposição ouvindo essas vozes heterogêneas, essa memória com poder de convocar um efeito no receptor e à luz disso dar maior sentido à documentação”, afirma a curadora e psicanalista.
O trajeto da mostra é o inverso do cronológico; vai da dimensão terapêutica (sempre vista como desdobramento da obra artística) aos primeiros trabalhos. São muitas as fases que se desdobram nesse percurso, dando corpo ao que Pierre Fédida - que foi seu analista nos anos em que viveu em Paris - resume em seu depoimento: “Lygia vivia na insegurança das categorias.” Insegurança essa que a obrigava a seguir em frente, a desdobrar permanentemente suas pesquisas, a tirar as conseqüências e seguir o rumo que seu próprio trabalho indicava. Primeiro desestabilizando o estatuto do objeto, do artista e do receptor, depois defendendo o “singular estado de arte sem arte”. “Ela tinha consciência da violência da vida, o quanto ela te obriga a criar”, resume a curadora.
Lygia Clark. Pinacoteca do Estado. Pça. da Luz, 2, centro, 3229-9844. 10h/18h (fecha 2.ª). R$ 4 (sáb. grátis). Até 26/3. Abertura amanhã, às 11h
Fonte:
Estadão
URL Fonte: https://reporternews.com.br/noticia/322912/visualizar/
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