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Literatura: Grata surpresa literária
O primeiro livro do mexicano David Toscana lançado no Brasil, O Último Leitor (Casa da Palavra, 160 págs., R$ 29), é a mais grata surpresa entre os lançamentos deste ano. Toscana, aos 44 anos, já foi comparado sem nenhum favor ao norte-americano Paul Auster. Com seis livros publicados desde 1992, o escritor mexicano, que vive em Monterrey, concedeu uma entrevista exclusiva à Agência Estado, na qual se define como "filho" espiritual do patrício Juan Rulfo, do uruguaio Juan Carlos Onetti e do chileno José Donoso. Um filho, aliás, de quem todo pai se orgulharia.
Pai e filho são também os personagens principais de O Último Leitor. O pai chama-se Lucio. É o bibliotecário desse povoado de 40 e poucas casas, devorado pela poeira e pelo tempo, onde ninguém lê. O filho Remigio, dono do único poço com água de Icamole, é o oposto do pai. Contudo, sente-se obrigado a mergulhar na leitura de um livro que tem muito a ver com sua história real - ou, pelo menos, com a que vive no momento, a de um homem tentando ocultar um corpo que acha no fundo de seu poço, agora seco como os dos vizinhos.
Toscana visitou Icamole uma única vez. Impressionado com aquele monumental deserto bíblico, surgiu a idéia de construir uma novela sobre uma biblioteca instalada naquele lugar seco e inóspito. Como não se sentia nem um pouco à vontade com a herança do realismo mágico latino-americano, Toscana rejeitou soluções sobrenaturais para resolver a situação de seus personagens. Para ele, a realidade já está de bom tamanho. Seu desafio foi contar uma história original com personagens consistentes, sólidos. Lúcio, o bibliotecário, tem vocação não exatamente para censor, mas para juiz. Alarmado com a abundância de autores medíocres, cria um inferno de formigas e baratas ocupadas em devorar os livros que desaprova. E são muitos.
Toscana passa pelo mesmo dilema. Ex-engenheiro, que publicou seu primeiro livro aos 31 anos, o autocrítico escritor não poupa nem mesmo a sua literatura. Num dado momento de O Último Leitor, na biblioteca municipal de Icamole, desprezada até pelo governo, condena às trevas a elogiada novela de Toscana, Santa María del Circo, classificada de "melodrama sobre anões e mulheres barbadas". Alegoria do desamparo humano, Santa María del Circo não merece a impiedosa (auto)crítica, segundo os críticos estrangeiros. Essas criaturas de circo que chegam ao povoado fantasma do livro, dizem eles, anunciam uma nova ordem a um mundo destruído. Caem na estrada em busca da própria redenção. O tema não é agradável e Toscana não faz o mínimo esforço para torná-lo menos árduo. "Temos de voltar a D. Quixote, onde se criou a forma da novela, para resgatar a fantasia que falta aos romancistas contemporâneos", decreta.
Imaginação não falta ao escritor mexicano. Nem obsessões. Fiel à celebração do Dia dos Finados - sempre com festa - no México, há sempre um morto (ou mais) em livros como Estación Tula (1995) ou Duelo por Miguel Pruneda (2002). O primeiro reproduz os diários de um homem que falsifica a própria morte para viver um verdadeiro amor. O autor da proeza é um escritor fracassado que perde o emprego e acaba contratado por um velho para ser seu ghost-writer. Em Miguel Pruneda, morre um político que lutou pela democracia, um estrangeiro é assassinado e uma menina desaparece, como em O Último Leitor. "Tenho várias influências, especialmente Onetti por seu mundo sombrio e pela crença de que, aconteça o que acontecer, estamos destinados ao fracasso", justifica. "No fim, sempre ganha a morte", reflete. "Somos apenas para deixar de ser", conclui, num laivo existencialista.
Do chileno Donoso vem o pára-quedas salvador. "Ele me apresenta um mundo com outras possibilidades", diz Toscana, referindo-se à profusão de metáforas usadas pelo autor de Coronación para superar as limitações da linguagem realista. E de Juan Rulfo, o que aprendeu? "A importância de não dizer certas coisas." Essa busca pela palavra exata já foi reconhecida até pelo New York Times. "Sua obra ocupa um lugar à parte entre os autores latino-americanos", definiu um crítico do jornal americano, garantindo seu ingresso no templo ocupado por Borges e Carpentier.
Um aspecto pouco explorado pelos críticos estrangeiros é o humor de Toscana. Ele consegue fazer rir com os temas mais insólitos. Em O Último Leitor, por exemplo, quando Remigio vai enterrar sob um abacateiro o corpo da garota achada no poço, ele descreve o ritual em todos os detalhes, ao contrário do escritor fictício que cria a saga de Babette, história paralela que conta a perseguição a uma garota e omite sua morte. O bibliotecário Lucio manda para o inferno todos os autores que não conseguem descrever a morte e recorrem a uma profusão de adjetivos para inchar sua narrativa.
Outra característica inconfundível em Toscana é a tenaz defesa que faz do regionalismo. Ele não cria povoados macondianos. Usa o cenário real e transforma-o com a fúria de um narrador que domina a estrutura de suas novelas e não rejeita a intertextualidade como arma. E a literatura globalizada? "Há mais de três séculos que a literatura é global, traduzida, e agora vem o mercado editorial ditar regras como se deve ou não escrever", critica, evocando uma antiga máxima de Tolstoi: "Se queres ser universal, fala da tua aldeia."
Toscana fala de aldeias, mas dos outros, nenhuma delas distante de Monterrey, onde nasceu e vive até hoje. Ele morou algum tempo nos Estados Unidos e fica contente quando a crítica o compara a Paul Auster. "Como ele, também me interesso por mundos particulares e boa parte do que conto se passa na cabeça dos personagens, não na realidade tangível." Isso não prejudica seu diálogo com o realismo pós-moderno do amigo Paco Ignacio Taibo II, escritor espanhol criado no México e autor de uma biografia ficcionalizada de Che Guevara. "Taibo cria personagens memoráveis", diz ele a respeito do autor, associado pela crítica americana a uma corrente jocosamente batizada de "niilismo mágico". Tanto Taibo como Toscana se mostram traumatizados com a tradição do "realismo mágico".
Pai e filho são também os personagens principais de O Último Leitor. O pai chama-se Lucio. É o bibliotecário desse povoado de 40 e poucas casas, devorado pela poeira e pelo tempo, onde ninguém lê. O filho Remigio, dono do único poço com água de Icamole, é o oposto do pai. Contudo, sente-se obrigado a mergulhar na leitura de um livro que tem muito a ver com sua história real - ou, pelo menos, com a que vive no momento, a de um homem tentando ocultar um corpo que acha no fundo de seu poço, agora seco como os dos vizinhos.
Toscana visitou Icamole uma única vez. Impressionado com aquele monumental deserto bíblico, surgiu a idéia de construir uma novela sobre uma biblioteca instalada naquele lugar seco e inóspito. Como não se sentia nem um pouco à vontade com a herança do realismo mágico latino-americano, Toscana rejeitou soluções sobrenaturais para resolver a situação de seus personagens. Para ele, a realidade já está de bom tamanho. Seu desafio foi contar uma história original com personagens consistentes, sólidos. Lúcio, o bibliotecário, tem vocação não exatamente para censor, mas para juiz. Alarmado com a abundância de autores medíocres, cria um inferno de formigas e baratas ocupadas em devorar os livros que desaprova. E são muitos.
Toscana passa pelo mesmo dilema. Ex-engenheiro, que publicou seu primeiro livro aos 31 anos, o autocrítico escritor não poupa nem mesmo a sua literatura. Num dado momento de O Último Leitor, na biblioteca municipal de Icamole, desprezada até pelo governo, condena às trevas a elogiada novela de Toscana, Santa María del Circo, classificada de "melodrama sobre anões e mulheres barbadas". Alegoria do desamparo humano, Santa María del Circo não merece a impiedosa (auto)crítica, segundo os críticos estrangeiros. Essas criaturas de circo que chegam ao povoado fantasma do livro, dizem eles, anunciam uma nova ordem a um mundo destruído. Caem na estrada em busca da própria redenção. O tema não é agradável e Toscana não faz o mínimo esforço para torná-lo menos árduo. "Temos de voltar a D. Quixote, onde se criou a forma da novela, para resgatar a fantasia que falta aos romancistas contemporâneos", decreta.
Imaginação não falta ao escritor mexicano. Nem obsessões. Fiel à celebração do Dia dos Finados - sempre com festa - no México, há sempre um morto (ou mais) em livros como Estación Tula (1995) ou Duelo por Miguel Pruneda (2002). O primeiro reproduz os diários de um homem que falsifica a própria morte para viver um verdadeiro amor. O autor da proeza é um escritor fracassado que perde o emprego e acaba contratado por um velho para ser seu ghost-writer. Em Miguel Pruneda, morre um político que lutou pela democracia, um estrangeiro é assassinado e uma menina desaparece, como em O Último Leitor. "Tenho várias influências, especialmente Onetti por seu mundo sombrio e pela crença de que, aconteça o que acontecer, estamos destinados ao fracasso", justifica. "No fim, sempre ganha a morte", reflete. "Somos apenas para deixar de ser", conclui, num laivo existencialista.
Do chileno Donoso vem o pára-quedas salvador. "Ele me apresenta um mundo com outras possibilidades", diz Toscana, referindo-se à profusão de metáforas usadas pelo autor de Coronación para superar as limitações da linguagem realista. E de Juan Rulfo, o que aprendeu? "A importância de não dizer certas coisas." Essa busca pela palavra exata já foi reconhecida até pelo New York Times. "Sua obra ocupa um lugar à parte entre os autores latino-americanos", definiu um crítico do jornal americano, garantindo seu ingresso no templo ocupado por Borges e Carpentier.
Um aspecto pouco explorado pelos críticos estrangeiros é o humor de Toscana. Ele consegue fazer rir com os temas mais insólitos. Em O Último Leitor, por exemplo, quando Remigio vai enterrar sob um abacateiro o corpo da garota achada no poço, ele descreve o ritual em todos os detalhes, ao contrário do escritor fictício que cria a saga de Babette, história paralela que conta a perseguição a uma garota e omite sua morte. O bibliotecário Lucio manda para o inferno todos os autores que não conseguem descrever a morte e recorrem a uma profusão de adjetivos para inchar sua narrativa.
Outra característica inconfundível em Toscana é a tenaz defesa que faz do regionalismo. Ele não cria povoados macondianos. Usa o cenário real e transforma-o com a fúria de um narrador que domina a estrutura de suas novelas e não rejeita a intertextualidade como arma. E a literatura globalizada? "Há mais de três séculos que a literatura é global, traduzida, e agora vem o mercado editorial ditar regras como se deve ou não escrever", critica, evocando uma antiga máxima de Tolstoi: "Se queres ser universal, fala da tua aldeia."
Toscana fala de aldeias, mas dos outros, nenhuma delas distante de Monterrey, onde nasceu e vive até hoje. Ele morou algum tempo nos Estados Unidos e fica contente quando a crítica o compara a Paul Auster. "Como ele, também me interesso por mundos particulares e boa parte do que conto se passa na cabeça dos personagens, não na realidade tangível." Isso não prejudica seu diálogo com o realismo pós-moderno do amigo Paco Ignacio Taibo II, escritor espanhol criado no México e autor de uma biografia ficcionalizada de Che Guevara. "Taibo cria personagens memoráveis", diz ele a respeito do autor, associado pela crítica americana a uma corrente jocosamente batizada de "niilismo mágico". Tanto Taibo como Toscana se mostram traumatizados com a tradição do "realismo mágico".
Fonte:
AE
URL Fonte: https://reporternews.com.br/noticia/328988/visualizar/
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