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Cultura
Terça - 11 de Maio de 2004 às 11:25
Por: Antonio Gonçalves Filho

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São Paulo - A russa Elena Gala, ex-mulher do poeta Paul Eluard, não resistiu quando Dalí pulou como um bárbaro e cobriu-se de excrementos de cabra para conquistar seu coração, nos anos 20 do século passado. Foi o início de uma bela (para eles) história de amor. Louca por dinheiro, Gala viu nessa excentricidade uma indústria de dólares lhe acenando. Não estava errada. Sem Gala, Salvador - é provável - não teria sido Dalí. Ela o ajudou a criar o personagem que chocava burgueses escandalizáveis. Estimulou-o, sobretudo, a forjar o "louco genial" que a mídia reverenciava e os intelectuais odiavam já nos anos 1930.

Foi mais ou menos por essa época que Dalí desenvolveu o embrião de um método de criação chamado "paranóico-crítico" com uma pequena ajuda de seu amigo Jacques Lacan, que há 70 anos escreveu uma tese chamada Da Psicose nas suas Relações com a Personalidade. Lacan não tem culpa (ou tem?) por ter inspirado um paranóico, mas certo é que Dalí reviu toda a história da arte ocidental segundo uma perspectiva exclusivamente pessoal e psicanalítica. Evocando claríssimas recordações de infância, ele só precisou delas para entender a sua e a arte dos outros. E assim foi.

Madonna - O exemplo da tela Angelus, de Millet é ilustrativo. Uma das obras mais reproduzidas da história da arte, o quadro foi objeto de um estudo fenomenológico que explica por que a sexualidade doentia de Dalí o aproximou de Gala e as razões de ambos (Milllet e ela) dominarem toda a sua obra. Gala foi seu modelo de madonna, da santa eleita para adoração masoquista do pintor que, impotente, teria conseguido o milagre da ereção apenas com a russa. O autor da inconfidência é seu colaborador e secretário Enrique Sabater. Ele diz que o pai de Dalí o apavorou de tal modo com o fantasma de doenças venéreas que o adolescente passou a abominar as relações sexuais, preferindo a masturbação. Verdade ou não, o fato é que Gala controlava não só a conta bancária como as mãos do pintor, fazendo com que elas se deslocassem exclusivamente para as telas, que ficaram repletas de cenas de onanismo explícito.

Convertida em sua única musa, Gala sabia se fazer indispensável, eclipsando, segundo Sabater, todos os personagens que ousavam intervir na relação dos dois, dos familiares aos amigos de juventude, passando pelos mecenas de Dalí. Gala, obviamente, conhecia o passado do marido. A Espanha inteira sabia das relações de Salvador Dalí com o poeta homossexual Federico García Lorca, por meio da correspondência (muita íntima) entre os amigos. Dalí tinha 18 anos, Lorca, 24 , quando os dois se conheceram. A "amizade particular" durou até 1936, quando o poeta, antifranquista, morreu assassinado em Granada pelas tropas de Franco. Dalí, monarquista, silenciou a respeito.

Freudiano - Adolescentes sem roupa também aparecem com assiduidade nas telas do pintor, talvez com maior freqüência do que talvez pretendesse Dalí, revelando, acima de tudo, sua admiração (algo incômoda) por acadêmicos como Bouguererau e Meissonier. É o lado kitsch do surrealismo de Dalí, mas que explica a irresistível atração que a classe média tem por essas figuras "enigmáticas", que "desafiam" o espectador com seus enigmas pseudo-freudianos e um repertório paupérrimo de temas recorrentes. Como em sua leitura antropofágica do Angelus de Millet, também essa obra "misteriosa" pode ser facilmente decodificada como jogo algo infantil de um cabotino. O sonho dominante de Dalí é canibal. Ele está sempre devorando seus modelos, seja Gala ou qualquer outro ser infeliz que habite o sonho desse paranóico, perdido num mundo de formigas, relógios moles e outras metamorfoses primárias.

De qualquer modo, a influência de Dalí não pode ser desprezada. O surrealismo fez surgir grupos como o Fluxus. Provavelmente não haveria a performance sem a experiência surrealista. Finalmente, o mundo teria ficado um pouco mais aborrecido sem os sonhos e as obsessões de um espanhol que, fingindo-se de louco, afastou o fantasma da loucura familiar (parentes próximos cometeram suicídio acometidos de surtos paranóicos). Num mundo em que soldados americanos torturam iraquianos e fazem-se fotografar como domadores de leões de circo ao lado de seres humanos acuados, a figura "excêntrica" de Dalí pareceria, hoje, absurda e tragicamente normal. O mundo real suplantou as invencionices dos surrealistas. É mais assustador que os monstros criados pelos sonhos de um paranóico.




Fonte: Estadão.com

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