Um neném, duas mães e muitos documentos
RIO - Vitor ainda não conhece o mundo ou suas intrincadas estruturas burocráticas, mas, ao lado de sapatinhos, brinquedos e fraldas, uma caixa com volumosa papelada espera sua chegada, em julho, num quarto decorado com leões, girafas e outros bichos. Na montanha de documentos, um alvará judicial conta a parte mais recente da sua ainda breve história: gestado por Carla da Costa Pimentel, ele deverá ter o nome da mãe biológica, Natasha Kimus Nogueira, em sua declaração de nascido vivo, documento usado como base para a certidão de nascimento. A autorização é pioneira no Brasil. Em outros exemplos da barriga solidária ou útero de substituição — como é chamado o recurso usado pela família de Teresópolis, Região Serrana do Rio — os genitores podem chegar a esperar meses para ver seus nomes estampados nos papéis dos rebentos. Sem útero por conta de uma síndrome congênita, a professora de educação física Natasha, de 30 anos, recorreu à mulher do irmão, a depiladora Carla, de 35, para realizar o sonho de ter um filho. Óvulo e espermatozoide dos pais biológicos foram fecundados em laboratório e, em seguida, transferiu-se um embrião para o útero da depiladora.
— Soube, por outras mães que recorreram ao útero de substituição, sobre o transtorno que pode se tornar a certidão de nascimento. Por isso, começamos o processo ainda durante a gravidez. Com sorte, conseguimos rapidamente o alvará. Graças ao documento, vou poder amamentar Vitor ainda na maternidade — comemora Natasha, que faz tratamento para estimular a produção de leite. Caso não fosse reconhecida como mãe do bebê, não poderia alimentá-lo no hospital, por conta de regras que restringem a amamentação cruzada.
Nas palavras do marido de Natasha, o professor de artes Max Sarzedas, ao buscar a Defensoria Pública de Teresópolis, o casal já estava “calejado”. O processo para ter um filho começou em 2011. Por conta de uma resolução do Conselho Federal de Medicina exigindo que doadoras temporárias de útero pertençam à família de um dos pais biológicos, num parentesco consanguíneo de até quarto grau, Natasha e Sarzedas precisaram de aprovação do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio para que Carla gestasse o bebê. O processo para conseguir a autorização levou um ano, e a gravidez foi novamente adiada por causa de tentativa mal sucedida de fertilização e de problemas de saúde da cunhada. Em outubro passado, ao receber o resultado positivo do teste de gravidez de Carla, a família finalmente estourou a garrafa de champanhe guardada havia três anos.
— Estava muito ansiosa. Quando você descobre que não pode ter filhos, seu mundo cai. O sonho de construir uma família acaba — lembra Natasha, portadora da Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser, uma anomalia do aparelho reprodutor feminino.
Grávida de 31 semanas, Carla garante que nunca teve dúvidas quanto a carregar em sua barriga um bebê da cunhada, que é madrinha de seu filho, Gustavo, de nove anos. Agora, ela e o marido serão padrinhos de Vitor.
— Quando me perguntam se estou grávida, respondo: “Sim, mas não é meu. É da minha cunhada” — diverte-se a depiladora. — Todo mundo demora a entender, mas acha muito bonito.
O marido de Natasha conta que, ao longo dos anos, o casal juntou uma espécie de “dossiê” da gravidez. Ter os documentos em mãos ajudou a agilizar o processo de obtenção do alvará judicial:
— Brinco que, quando Vitor nascer, não vai ter certidão, vai ter currículo. Cada hora surge uma dúvida. Estamos torcendo para que essa decisão sirva de exemplo para outras famílias.
Um dos defensores que atuou no caso, Filipe José Bastos de Assis, conta que, ao pesquisar sobre histórias parecidas com a do casal, encontrou apenas uma decisão favorável, em Passo Fundo (RS).
— Em geral, as crianças são registradas com o nome da gestante e, depois, os pais têm de pedir uma retificação do registro de nascimento. Nesses casos, até por segurança jurídica, a Justiça costuma pedir um exame de DNA, além de farta documentação — explica. — O caso de Natasha e Max é suis generis e tentamos ser rápidos. O magistrado também ficou extremamente sensibilizado com a história.
A comoção do juiz José Ricardo Ferreira de Aguiar, do cartório da 1ª Vara de Família da Comarca de Teresópolis, fica evidente no texto do alvará judicial de 18 de março passado. “Estamos diante de uma inequívoca prova de amor. Amor este de todos os lados, dos requerentes em buscar uma extensão de seu amor na concepção de um filho e de outro lado uma inestimável prova de amor por parte de um irmão e de uma cunhada em não medir esforços em realizar o sonho maior de um casal que é formar uma família, constituída de um pai, uma mãe e um filho”, afirma.
UM MÊS DE ESPERA PARA OBTER DOCUMENTO
O entendimento de Aguiar, porém, nem sempre é compartilhado pelos envolvidos no processo de registros de crianças. A assistente social Gleice Raupp, de 31 anos, só conseguiu que seu nome constasse em certidão um mês depois do nascimento de seu filho, Artur. Ela denunciou a veículos de comunicação a dificuldade de obter o documento do bebê. Hoje com três meses, ele foi gestado pela mãe de Gleice, Nivalda Raupp, de 55 anos.
— Busquei um cartório antes de Artur nascer, mas disseram que eu devia procurar um advogado, como se fosse muito fácil ter um. Eu já tinha gastado dinheiro com o tratamento, então resolvi esperar. A declaração de nascido vivo saiu com o nome da minha mãe. Depois que falei publicamente sobre a dificuldade, consegui a certidão com o meu nome — conta Gleice, que recorreu ao Ministério Público Estadual de Santa Catarina, em Criciúma.
O defensor Filipe José Bastos de Assis diz que ainda há “um vácuo legislativo” em relação a casos como o de Natasha e Gleice:
— Normalmente, o Direito está atrasado em relação a fatos sociais. Embora a reprodução assistida tenha uma ou outra previsão no Código Civil, os métodos vêm sendo inovados. É impossível o Direito acompanhar essas inovações.
Para Rodrigo da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a Justiça deve entender que a tendência de formação de novos tipos de famílias “não tem volta”.
— Não conhecia um caso como esse (de Natasha e Max) de decisão favorável antes do nascimento do bebê, e fico feliz que a Justiça tenha compreendido a situação. Se não há ilegalidade no útero de substituição, não tem motivo para negarem aos pais o direito de registrarem a criança — opina.
Cunha lamenta que não haja uma lei tratando de questões ligadas ao procedimento:
— Não conseguiríamos aprovar uma lei nesse sentido, uma vez que qualquer projeto que tenha algum conteúdo moral ou religioso não é aprovado. Mas a fonte do Direito não são só as leis, são também os costumes.
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