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Ciência/Pesquisa
Quarta - 16 de Setembro de 2015 às 20:47

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Jakeline Diel tem 26 anos e nunca colocou um cigarro na boca, mas conhece como poucos um mal que é incomum até entre fumantes: a intoxicação por tabaco. “Você não tem ideia do que é aquilo. Tremor, dor no corpo, dor de cabeça, tontura, não dá para ficar em pé. Às vezes tenho de me jogar no chão na lavoura mesmo. Quando chego em casa, a cama não para de rodar. São uns três dias seguidos quase sem conseguir comer, só vomitando.”


A primeira vez que ela sofreu com os sintomas foi aos dez anos, quando começou a ajudar o pai nas lavouras de fumo na pequena comunidade de Boiteuxburgo, interior de Santa Catarina. Jakeline não é a única que tem a saúde afetada por causa da colheita de tabaco. Seu caso se repete entre vários agricultores que trabalham para a indústria de cigarros – são 183 mil famílias em todo o Brasil.

Há seis anos, o Ministério da Saúde fez uma pesquisa que reconheceu pela primeira vez os sintomas sofridos por trabalhadores como Jakeline. É uma espécie de overdose de nicotina, absorvida pela pele através do manuseio das folhas de fumo durante a colheita. Na última safra de tabaco, exames encomendados pelo Centro Regional de Referência em Saúde do Trabalhador, sediado em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, revelaram que a concentração de nicotina no organismo de produtores de fumo pode ser 50 vezes maior do que o que é considerado natural (sim, existe uma taxa natural, decorrente das pequenas quantidades de nicotina presentes em alimentos).

“Os números variam de acordo com idade, sexo, metabolismo e tempo de contato com a lavoura”, diz a médica do trabalho Adriana Skamvetsakis, que analisou os testes. “Ainda assim, 32% dos 82 fumicultores examinados apresentaram algum nível de intoxicação.”

Além da náusea, a chamada “doença da folha verde do tabaco” pode causar dores de cabeça, cólicas, dores musculares e até arritmia cardíaca. Embora só recentemente tenham sido descritos pela literatura médica no Brasil, os sintomas da enfermidade já são velhos conhecidos dos agricultores. É o caso de Aloisio Storlarckz, que plantou fumo por quase duas décadas em Nova Trento, em Santa Catarina. “Na época nem sabíamos dessa história de doença do tabaco, o que sabíamos é que depois da colheita era hora de vomitar tudo o que tinha e o que não tinha no estômago, dia e noite, sem parar”, conta o produ­tor rural, que abandonou o plantio de fumo por causa da saúde fragilizada. Stor­larckz foi morar na cidade e só voltou para o campo quando a mulher começou uma promissora plantação de uvas.

O PREÇO DA FUMAÇA Ph.D. em saúde pública e pesquisadora do Centro de Estudos do Tabaco da Fiocruz, Silvana Rubano explica que o maior risco é o contato com a planta molhada. “Como a nicotina é uma substância solúvel em água, o orvalho ou a chuva podem facilitar a absorção cutânea”, diz ela. O problema é que a colheita é sempre realizada entre dezembro e fevereiro, sob calor e chuva recorrente. Além disso, a própria pele molhada de suor favorece a contaminação dérmica no contato com o tabaco.

Quando os sintomas começam a se manifestar, a ordem é se hidratar, tomar um banho para se livrar do excesso de nicotina na pele e repousar. Jakeline e Storlarckz não são exceções: a maioria dos fumicultores não procura ajuda médica quando sofre as reações, o que prejudica as estatísticas sobre a doença no país.

Além de na lavoura, a contaminação dos trabalhadores também pode acontecer durante a cura do fumo. O processo de secar as folhas de tabaco no paiol leva uma semana, quando a temperatura do forno precisa ser controlada em tempo integral. Por isso,muitos fumicultores dormem no galpão durante três meses para colocar lenha na estufa de hora em hora, dia e noite. “Chegava a madrugada, e às vezes eu tinha de deixar minha esposa sozinha controlando a estufa e ir para casa tomar banho e tentar dormir, mas não conseguia porque ficava vomitando verde. Tinha enjoo, tontura, cegueira, suor frio, tremedeira”, diz Gilmar Cognacco, agricultor de Leoberto Leal, em Santa Catarina, que também desistiu dos 160 mil pés de tabaco que cultivava em sua propriedade.

Uma pesquisa do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR), conduzida pelo professor Paulo Perna, aponta os males que trabalhar na colheita de tabaco pode trazer à saúde. Em geral, a absorção de nicotina pela pele equivale a mais de um maço de cigarros por dia. O curioso é que 71% dos casos de manifestação da doença da folha verde acontecem justamente entre os não fumantes. Por isso, conta o ex-produtor Storlarckz, quando chega a safra muitos agricultores começam a fumar para suportar melhor os dias de colheita. Em geral, quem fuma desenvolve uma tolerância natural à nicotina, e assim os sintomas da contaminação são inibidos, ainda que a concentração da substância esteja aumentando no sangue. A maioria dos exames que confirmaram intoxicação em Santa Cruz do Sul, por exemplo, pertencia a agricultores que não haviam relatado nenhum sintoma como náuseas ou dores.

Os produtores rurais que cultivam o fumo são recrutados por representantes de corporações como a Souza Cruz, a Universal Leaf Tabaco e Philip Morris. Essas companhias oferecem contratos em que se comprometem a comprar toda a produção. Nos anos 1970, as promessas de desenvolvimento rápido fizeram que alguns municípios do país convertessem mais de 90% de sua produção agrícola em fumo. Hoje, o Brasil é consi­derado o maior exportador mundial do produto. Em 2014, 476 mil toneladas de tabaco deixaram o país para virar fumaça na China, nos Estados Unidos e na Holanda.

Além de estabelecer procedimentos para o plantio, a colheita e a secagem do produto, os representantes da indústria, também chamados de instrutores do fumo, orientam os agricultores sobre os efeitos adversos do contato com a folha úmida e vendem uma roupa de proteção para o trabalho na colheita.

Os resultados de um estudo recente da Universidade Federal de Pelotas, coordenado pela médica Ana Fassa, no entanto, contestam a eficácia do vestuário em proteger o agricultor da contaminação. Ainda ­assim, uma nova tecno­logia já foi desenvolvida para melhorar a imper­mea­bilidade do tecido. “A garantia de proteção é de 98%”, afir­ma Iro Schunke, presidente do Sindicato das Indústrias do Tabaco. Eficiente ou não, a roupa, que se assemelha a uma capa de chuva, é quase uma lenda entre os produtores, já que o calor intenso na lavoura e no paiol tornam seu uso impraticável.

PREJUÍZOS CRÔNICOS Enquanto os agricultores tentam escapar das náuseas, pesquisadores ainda discutem os efeitos crônicos do contato dérmico com a nicotina. “Assim como acontece entre os fumantes, a longo prazo a exposição dos agricultores pode aumentar o risco de desenvolvimento de outras doenças relacionadas ao tabaco, como câncer, doença pulmonar obstrutiva crônica e doenças cardiovasculares”, afirma a médica Tânia Cavalcante, do Instituto Nacional do Câncer.

Maicon Diel, marido de Jakeline, não duvida disso. No início do ano ele perdeu o pai, vítima de um tumor na medula óssea. Estabelecer uma relação entre o trabalho na lavoura de fumo e o desenvolvimento desse tipo de doença ainda não é tão simples, mas Diel prefere não correr mais riscos. “Meu pai nos ensinou a plantar fumo porque foi a única coisa que ele aprendeu. Todo mundo aqui já nasce e cresce dentro das lavouras de tabaco e acha que essa é a única oportunidade que existe no campo. Espero ensinar algo diferente para o meu filho”, conta o agricultor.

O risco de permanecer na fumicultura não é apenas para a saúde, mas também para o bolso. Além de pagar pouco, a indústria vem diminuindo o número de contratos anuais por causa da queda na demanda. Só no Brasil, o consumo de cigarros diminuiu 20% nos últimos cinco anos – depois de ter caído pela metade nas duas décadas anteriores. No mercado externo, os números são ainda mais drásticos. De olho nessa queda, Diel está substituindo a plantação de 50 mil pés de fumo por alimentos orgânicos. “As pessoas não querem mais saber de comer e fumar veneno”, diz o agricultor.





Fonte: Revista Galileu

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