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Internacional
Sexta - 17 de Agosto de 2012 às 15:53
Por: Fábio Tito

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Retrato de Mauricio Lima (Foto: Arquivo pessoal)
Retrato de Mauricio Lima (Foto: Arquivo pessoal)

 

Em meio à cobertura jornalística de guerras civis econflitos internacionais no Oriente Médio, o olhar de um fotógrafo brasileiro tem marcado e sido reconhecido como um dos mais sensíveis e aprofundados.Lembre dos principais conflitos na última década: Mauricio Lima estava lá, registrando para o mundo não só os bombardeios e as trocas de tiro, mas principalmente a vida dos habitantes, que segue e se adapta à guerra ao seu redor.

Seu olhar ajudou a retratar as invasões do Iraque e do Afeganistão na guerra contra o terror, que custou mais de US$ 1,4 trilhão e tirou milhares de vidas de civis e militares. E mesmo em meio ao caos da situação no Iraque, a história de um menino que ficou cego num bombardeio rodou o planeta através das lentes de Mauricio Lima e foi transformada com a ajuda vinda de milhares de quilômetros de distância.
 

Na Líbia, Mauricio estava a seis quadras de distância quando os rebeldes capturaram Muammar Kadhafi, e a ditadura familiar mais duradoura do último século foi deposta pela força do povo.

Especial Fotografia - calendário dia 4 (Foto: Editoria de Arte/G1)

 

O G1 publica esta semana o especial "Do olhar à fotografia", uma série de reportagens que têm a fotografia como tema, para celebrar a semana que antecede o Dia Mundial da Fotografia, no domingo (19). A data é referente a 19 de agosto de 1839, quando a França apresentou ao mundo os estudos de Louis Daguerre que resultaram no daguerreótipo - marco considerado por muitos como o "nascimento" da fotografia. As duas últimas reportagens, a serem publicadas neste final de semana, abordam a fotografia de natureza e um novo rumo visto como opção na aplicação da fotografia.

Pronto para embarcar para o próximo trabalho a qualquer momento, o fotógrafo voltou recentemente de um período no Afeganistão - isso porque uma viagem à Síria acabou não dando certo e foi substituída de última hora.

Em entrevista ao G1, Mauricio relata como é o trabalho em uma situação de guerra, o que guia seu olhar nas coberturas, situações inusitadas e fatos que o surpreenderam ao longo dos últimos anos em suas diversas viagens.

Lima trabalhou por mais de 10 anos para a agência francesa France Presse, e nos últimos anos tem atuado de forma mais independente com contribuições para o jornal americano "The New York Times". Já foi eleito fotógrafo de agência do ano pela revista "Time" e teve fotos premiadas internacionalmente.

Frutos da guerra no Iraque

G1 - Você já esteve no Iraque em momentos diferentes ao longo da última década. Como foi retratar essas mudanças? Como os iraquianos e os soldados lidavam com a situação?

Mauricio - Fui ao Iraque em períodos bastante complexos, em 2003, 2004 e outra vez mais recentemente, em 2011. Da primeira vez, foi algo passageiro mas tive mais contato com civis, e em 2004 já era completamente outra onda. Fui a Fallujah, e estavam acontecendo muitos sequestros e decapitações de estrangeiros por rebeldes, o clima era de perigo. Tanto que não se viam fotógrafos americanos trabalhando nessa cobertura, porque eles seriam alvos certos (devido ao clima anti-EUA). A única segurança que havia para o trabalho seria acompanhar as tropas militares.


O que eu percebi foi, muitas vezes, a maneira como os militares tratavam os iraquianos, a humilhação dos presos, por exemplo. E eu sentia uma ligação muito forte entre o momento político nos Estados Unidos e as operações americanas no Iraque.

(uso único, não reaproveitar) A foto de um iraquiano morto em Tikrit ganhou o segundo lugar no prêmio Pictures of the Year International de 2004 (Foto: Mauricio Lima)
A foto de um iraquiano morto em Tikrit ficou em 2º
lugar no prêmio Pictures of the Year International
de 2004. Veja na galeria (Foto: Mauricio Lima)

 

Acompanhando os soldados em campo, eles evitavam falar sobre posição política e esse tipo de coisa, eram instruídos a isso. Mas com o passar do tempo alguns começavam a falar o que achavam de tudo aquilo. A maioria estava lá pelos benefícios oferecidos pelo governo americano, que suspende impostos e dá vários auxílios à família.

G1 - Alguma história específica te marcou mais ao relatar a vida dos iraquianos?

Mauricio - A história que mais me marcou foi a de um menino cego que vi pela primeira vez quando estava a caminho de um outro compromisso próximo a chamada "zona verde", em Bagdá. O pai dele pedia esmolas na calçada, e me chamou a atenção o rosto dele, com uma cicatriz. Houve uma empatia desde o começo. Isso era em dezembro de 2003.

Ayad foi ferido durante a invasão americana em abril de 2003. No bombardeio, um tio dele morreu e a avó perdeu parte da perna esquerda. Ayad perdeu a visão do olho direito e ficou só com 20% da do olho esquerdo. Ele acabou saindo da escola porque sofria muito bullying dos colegas por conta do olho e das marcas de queimadura no rosto"

Fiz meu primeiro contato com o pai dele, como manda a tradição no país - não se fala diretamente com crianças ou mulheres. Ele tinha uma receita médica dizendo que o tratamento para que o filho tivesse parte da visão recuperada custava US$ 10 mil.

Tive sempre a ajuda do mesmo taxista para as conversas. Quando ele falou que eu era brasileiro, o semblante dos dois mudou, eles sorriram. Há uma empatia grande por causa do futebol. Combinei de ir até a casa deles, em Hilla, na região da Babilônia, que fica a 180km ao sul de Bagdá. Queria mostrar a vida que o menino (Ayad Ali Brissam Karim) levava mesmo com a guerra.

Com a ajuda do taxista, que servia de tradutor, soube que o Ayad foi ferido durante a invasão americana em abril de 2003. No bombardeio, um tio dele morreu e a avó perdeu parte da perna esquerda. Ayad perdeu a visão do olho direito e ficou só com 20% da do olho esquerdo. Ele acabou saindo da escola porque sofria muito bullying dos colegas por conta do olho e das marcas de queimadura no rosto.

O menino Ayad posa com a foto que o retrata ainda antes do bombardeio (Foto: Mauricio Lima)
O menino Ayad posa com a foto que o retrata ainda
antes do bombardeio. Veja na galeria
(Foto: Mauricio Lima)

 

Eu o fotografei com a única foto que ele tinha de si mesmo antes de ficar cego. Era a foto do seu fichário escolar, da matrícula. Passei alguns dias lá para mostrar o cotidiano do menino. E foi lá a primeira vez em que caiu uma lágrima enquanto eu estava com a câmera no olho, saindo da casa dele.

As fotos chamaram atenção quando as mandei para a central (da agência France Presse), e acabou que eu mesmo escrevi um texto contando a história do menino.

G1 - E você teve notícias do menino depois disso?

Mauricio - Aconteceu que, quase dois anos depois, em outubro de 2005, eu fui selecionado para participar de um curso de fotógrafos em Amsterdã (Joop Swart), que reúne editores importantes de várias publicações. E através de uma editora da revista "Time", que não me conhecia pessoalmente mas lembrou do meu nome, fiquei sabendo que outras coisas tinham acontecido.

Foi muito importante, para mim, saber que, apesar de não atingir meu objetivo principal de acabar com a guerra, consegui ajudar um iraquiano"

Depois da publicação das fotos de Ayad, uma família dos Estados Unidos se comoveu e pagou para o menino ir ao país e fazer a operação nos olhos. Quando ela me contou isso, eu respondi: "Nem preciso saber de mais nada". Foi muito importante, para mim, saber que, apesar de não atingir meu objetivo principal de acabar com a guerra, consegui ajudar um iraquiano. Ainda tentei reencontrá-lo em 2006 para entregar as fotos ampliadas e saber como ele estava desde então, mas a violência impediu que eu voltasse. Mesmo assim, planejo um dia voltar.

No Brasil, sua casa fica em São Paulo. O fato de passar longos períodos fora te faz olhar para o Brasil de maneira diferente?

Mauricio - Sim, com certeza. Por exemplo... Em 2011, quando estive em Bagdá, o clima era outro, bem diferente das vezes anteriores. Lá tem um bairro chamado Karrada onde já era possível sair à noite com a família para tomar sorvete, esse tipo de coisa, enquanto em 2003 o povo vivia sob toque de recolher, tinha que estar dentro de casa a partir das 7 da noite.

Mesmo assim, a impressão que Bagdá me passou foi de uma cidade "emparedada", cheia de muros, barreiras, para todo lado. Existem miniguetos, e a questão da segurança privada está mais forte que nunca.

A gente precisa de menos ufanismo e mais conscientização. (...) Quando eu volto de um trabalho fora, ter visto o que acontece por lá me deixa muito mais reflexivo sobre o que acontece aqui"

E isso está acontecendo aqui [em São Paulo], também, com pessoas se fechando cada vez mais. As pessoas vivem aqui em um clima que muitas vezes se assemelha ao que eu senti em um país em conflito.

Isso me faz pensar muito nos interesses e no papel da mídia. Sinto que a mídia acaba só jogando as informações, os fatos, sem propor qualquer reflexão ou debate. A gente precisa de menos ufanismo e mais conscientização.

Não vejo isto aqui (o Brasil) como algo sério. Cobri protestos no Brasil em que a maioria estava ali usando o ato como desculpa para não fazer nada, para matar trabalho ou aula. O povo tem que saber que os protestos incomodam os políticos. Quando eu volto de um trabalho fora, ter visto o que acontece por lá me deixa muito mais reflexivo sobre o que acontece aqui.

Soldados e afegãos

G1 - Como foi o trabalho no Afeganistão em meio à presença das tropas dos EUA?

Meninos costumavam trabalhar na plantação de ópio no Afeganistão (uso único, não reaproveitar) (Foto: Mauricio Lima)
Meninos costumavam trabalhar na plantação de
ópio no Afeganistão. Veja na galeria
(Foto: Mauricio Lima)

 

Mauricio - Passei dois meses no Afeganistão. O primeiro foi acompanhando os fuzileiros navais americanos em Marjah, na província de Helmand, sul do país. A região é uma das maiores produtoras de ópio do mundo. O segundo mês foi em Cabul, fotografando a vida cotidiana. Nesse período, desenvolvi o ensaio "Afeganistão apocalíptico", onde quis estabelecer uma relação entre a presença militar americana e a cultura afegã.

O que me chamou atenção antes mesmo de ir para lá, foram as primeiras imagens do povo afegão após o 11 de Setembro, a aparência do povo. Eles tinham um aspecto que me remetia à minha infância, ao período em que fiz a primeira comunhão na igreja. Uns idosos com uma barba enorme... Não consigo traduzir a identificação que tive. Você chega lá e parece que voltou séculos no tempo, principalmente nas áreas mais remotas. Mesmo com 30 anos de violência, com a passagem dos russos e agora dos americanos, a vida e a cultura são mantidas.

G1 - E que aspectos dessa cultura são vistos nas suas fotos?

Mauricio - No Afeganistão eu conheci o esporte mais tradicional do país, chamado "buskashi". Dois times montando cavalos disputam pela carcaça de uma cabra morta. O animal não recebe nenhum preparo, é simplesmente morto para a partida.

Conheci o esporte mais tradicional do país, chamado "buskashi". Dois times montando cavalos disputam pela carcaça de uma cabra morta. O animal não recebe nenhum preparo, é simplesmente morto para a partida"

Outra coisa que me chamou a atenção foram os banhos coletivos. Toda sexta-feira, os homens se reúnem nesses chuveiros-saunas públicos e ajudam uns aos outros no banho, em uma tradição que precede as orações do dia, considerado sagrado. Eles precisam estar limpos para as orações.

Por fim, tem a questão das mulheres de burca afegã, a azul, que só existe lá. É considerado muito desrespeitoso fotografar mulheres no Afeganistão, e, das poucas vezes em que fiz isso, fui cercado por homens questionando qual era o meu propósito com aquelas fotos. Mas é um traço muito forte da cultura deles, e eu precisava mostrar aquilo de alguma forma - não poderia voltar sem aquela foto.

Maurício fotografou as tatuagens e o
Maurício fotografou as tatuagens e o "culto ao corpo"
entre militares ocidentais no Afeganistão.
Veja na galeria (Foto: Mauricio Lima)

 

G1 - O seu ensaio "Afeganistão apocalíptico" trata de mais do que isso, certo?

Mauricio - Esses aspectos culturais contrastaram com a parte do trabalho inicial, com os militares. Acompanhando eles, fotografei as tatuagens, muitas delas com conteúdo militar ou patriótico, e também um forte aspecto de culto ao corpo, com malhação e exercícios físicos.

Esse trabalho me rendeu o prêmio da revista "Time" de fotógrafo de agência do ano. Nesse prêmio, o que mais me comoveu foi a comparação feita com uma das minhas maiores inspirações, o [Henri] Cartier-Bresson.

Entre os rebeldes líbios

G1 - Como foi fotografar a Líbia justamente no período que culminou na queda do ditador Muammar Kadhafi?

Mauricio - De cara, o que chamou atenção na Líbia é que era o primeiro país árabe que visitei onde não havia agressão a estrangeiros. Lá, propus ao meu trabalho tentar entender a insanidade daquela situação, com a famigerada "chegada da democracia".

O corpo do ditador Muammar Kadhafi é retratado por Mauricio em um frigorífego depois de sua morte (uso único, não reaproveitar) (Foto: Mauricio Lima)
O corpo do ditador Muammar Kadhafi é retratado
por Mauricio em um frigorífego depois de sua
morte. Veja na galeria (Foto: Mauricio Lima)

 

Na chegada, passei três dias em Trípoli (capital), e depois fui a Sirte, onde o Kadhafi foi morto. Lembro de pensar que o Kadhafi podia de fato estar em Sirte, que é sua cidade natal. Pensei no Saddam Hussein, preso no Iraque, e no Bin Laden, morto no Paquistão (vizinho do Afeganistão)... Os líderes árabes não costumam bater em debandada. E a resistência na cidade com a chegada dos rebeldes foi realmente forte, eles estavam bem armados.

No dia em que ele foi capturado e morto, eu estava a cerca de seis quadras de distância daquela tubulação onde o encontraram se escondendo. O taxista que trabalhava para mim disse que estava no local, e que o Kadhafi foi morto lá mesmo, com um tiro na cabeça. Depois ainda fiz fotos do corpo dele sendo preservado num frigorífico (já em Misrata).

G1 - Vendo as fotos, fica clara a proximidade com que você trabalhou entre os grupos rebeldes. Não houve nenhum momento de mais tensão ou risco?

Mauricio - Uma situação foi bem marcante nessa cobertura. Eu estava acompanhando um grupo de rebeldes sobre um terraço em plena troca de tiros em Sirte. Uma hora, tanto o cara do meu lado esquerdo quanto o do lado direito foram alvejados. Eu provavelmente só não fui porque estava abaixado.

Eu estava acompanhando um grupo de rebeldes sobre um terraço em plena troca de tiros em Sirte. Uma hora, tanto o cara do meu lado esquerdo quanto o do lado direito foram alvejados. Eu provavelmente só não fui porque estava abaixado"

É estranho, porque o pensamento de que eu estou ali para levar aquilo para o mundo e de que não faço parte daquilo, aquela não é a minha causa... Esse pensamento meio que te "blinda" da situação. Mesmo assim, você não pode se expor. Uma foto não vale a minha volta dentro de um caixão, então é preciso muito cuidado.

G1 - E quanto a ter que registrar as muitas mortes que resultaram da guerra, como você lidava com isso?

Mauricio - Uma vez fui tentar tirar fotos de um enterro coletivo. Eram moradores enterrando vizinhos e familiares, uma situação muito delicada, e eu sabia que seria muito difícil ter permissão para fotografar. Mas quando cheguei lá e tirei o equipamento, fiquei impressionado com a reação. Os homens vinham me pedir e apontar para que eu fotografasse. Um deles falou algo que me impressionou: "Pode fotografar, para mostrar pro [David] Cameron (premiê britânico) e pro [Nicolas] Sarkozy (então presidente francês) o preço da "liberdade" da qual eles estão falando".

Rebelde ferido em troca de tiros é socorrido por companheiros (Foto: Mauricio Lima)
Rebeldes feridos em troca de tiros são socorridos
por companheiros. Veja na galeria (Foto: Mauricio
Lima)

 

G1 - Você disse que o futebol ajuda a criar a empatia dos locais para com os brasileiros. Em alguma situação isso ficou mais claro?

Mauricio - Algo surreal foi uma "participação" do Ronaldo ("Fenômeno"), também em Sirte. Foi na véspera da morte do Kadhafi. Cheguei com rebeldes a um outro grupo desconhecido, e fui apresentado. Eles perguntaram de onde eu era, e os que já me conheciam responderam "Do Brasil". Nisso, os homens já abriram sorrisos e começaram a repetir "Gudi Brasil" ("Good Brazil", mas com forte sotaque), e um deles disse "Gudi Ronaldo!". Ele tirou o celular do bolso e começou a me mostrar um vídeo com melhores lances da carreira do Ronaldo. Isso com tiros voando ao redor, sendo ouvidos de fundo. A situação foi muito surpreendente.





Fonte: Do G1

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