Depois das queimadas
Pantanal de Mato Grosso sofre com fogo, agrotóxico e mineração Incêndios deixaram marcas ambientais e o trade turístico sente baque com as pousadas vazias, também em razão da pandemia
Incêndios florestais de grandes proporções em 2020, poluição das águas, resíduos de agrotóxico e de mineração ameaçam o Pantanal, que há três anos enfrenta uma adversidade climática que causa esvaziamento de baías e secam corixos, comprometendo a fauna aquática e, consequentemente, a cadeia alimentar de alguns animais.
Atingido por todos os lados, aquela que é a maior planície alagável do mundo está à deriva, sem política pública para sua proteção.
Questionado sobre essa situação, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, saiu pela tangente afirmando que apenas 6% da área atingida pelo fogo no ano passado são de responsabilidade do Governo Federal.
Some-se a isso a pandemia da Covid-19, que praticamente zera a movimentação turística não somente naquela região, mas no mundo inteiro.
Eduardo Gomes/Diário
Terra seca, com pouco gado e sem a presença de bichos: resquícios das queimadas
Segundo a sabedoria popular pantaneira, fogo no Pantanal é tão comum quanto a água, mas é preciso dosá-lo, o que não foi possível em 2020, e resultou em incêndios florestais devastadores.
A prática do uso do fogo por pecuaristas para limpeza de pastagens conflita com a ciência e nenhuma das partes dá sinais de recuo.
Aos 73 anos, seo Jair Conceição da Rocha jura que, desde menino, limpa pasto com fogo e que o único perigo é quando se junta muito facho, após alguns anos sem queimada.
“Quando a gente queima todo ano, não dá problema, mas é preciso que se faça fora do horário de sol forte e quando não estiver ventando”, acrescenta.
A comunidade científica descarta essa prática, que, além de perigosa, atinge flora e fauna e empobrece o solo.
Em 2020, o fogo foi o elemento de agressão ambiental visível no Pantanal, sobretudo, em Poconé, mas não o único.
A escassez das águas nas baías, corixos e rios interferiu no ecossistema pantaneiro.
As áreas queimadas pelas chamas não deverão ser atingidas neste ano, por falta de facho para propagação, mas há imensas regiões que não sofreram com as chamas e que estão vulneráveis, tanto pela presença da vegetação nativa em áreas de pastagens, quanto pela estiagem, que agora acontece em pleno inverno – a estação das chuvas -, entre novembro e abril.
Eduardo Gomes/Diário
Rodovia Transpantaneira, a MT-060, quase deserta
Na região, não há grupos organizados de fazendeiros para enfrentar o fogo.
Em Poconé, o Governo instalou um Pelotão do Corpo de Bombeiros Militar, com cinco bombeiros equipados com um caminhão-tanque para 10 mil litros de água.
Esse efetivo, se chamado para combater incêndio florestal em pontos distantes da cidade, não conseguirá atender ao chamamento com rapidez.
O fogo pode ter várias origens, como mostra o Centro Integrado Multiagências de Coordenação Operacional (Ciman), órgão multidisciplinar do Governo Estadual, sobre os incêndios ocorridos no ano passado.
Segundo o Ciman, um dos primeiros casos aconteceu após um veículo capotar e se incendiar na Transpantaneira, sendo que suas chamas se alastraram.
Em outro registro, um apicultor queimou raízes para fazer fumaça, durante retirada de favos de mel, e o fogo se alastrou.
Um incêndio numa máquina agrícola de uma fazenda fez as labaredas se espalharem muito rapidamente.
Em outras duas situações, a limpeza de pasto resultou em fogaréu.
Esses fatos ocorreram em áreas distantes umas das outras, o que criou o chamado círculo de fogo.
A origem do fogaréu em 2020 ganhou partidarização.
Eduardo Gomes/Diário
Pousada ao lado do rio Bento Gomes, com pouca água
O presidente Jair Bolsonaro e os ministros Ricardo Salles e Tereza Cristina (Agricultura) sustentaram que, se no Pantanal o rebanho bovino fosse maior, os incêndios seriam menores.
Os três repercutiram a sabedoria popular naquela região, que sustenta a tese do "boi bombeiro", que, ao pastar, reduz a vegetação, o que, consequentemente, contribui para impedir incêndios.
Em Mato Grosso, a secretária de Meio Ambiente, Mauren Lazzaretti, discordou dessa afirmação.
Bolsonaristas e opositores deixaram de lado a realidade das chamas e abraçaram bandeiras políticas levantadas, enquanto a vegetação era consumida.
Enquanto proprietários rurais, peões, bombeiros e voluntários lutavam contra as chamas, alguns grupos tentavam ideologizar e partidarizar as chamas, atitudes essas sem resultado prático, mas que, durante bom tempo, ganharam destaque nas redes sociais.
A chuva na região fez rebrotar a vegetação rasteira, mas as chamas consumiram jatobás, carandás, lixeiras, guabirobas, ipês, pequizeiros e bocaiuvas, e a reposição dessas e outras espécie demorará anos.
A extensão dos incêndios dá a dimensão da tragédia entre algumas espécies que não conseguiram fugir, a exemplo do bicho-preguiça, e dos ninhais onde a passarada choca seus ovos.
As plantas aquáticas nas baías e corixos que secaram sofreram grandes danos.
Eduardo Gomes/Diário
Dona Lídia, da conveniência Barara
Os tuiuiús desapareceram juntamente com os talhamares, as garças, bicudos, tucanos, araras, quatis, antas, aracuã-do-pantanal, sabiá-laranjeira, cabeça-seca, borboletas, lebres, capivaras, veados, pacus, pintados, barbados, onças, macacos, papagaios, sabiás, abelhas, jaguatiricas, tamanduás, jiboias, arraias, caxinguelês, perdizes, emas, seriemas...
A bicharada não chegou a ser dizimada pelo fogaréu do ano passado, mas perdeu muitos indivíduos e teve tocas e ninhos consumidos pelas chamas.
Segundo o agrônomo aposentado do Ministério da Agricultura, Ronei de Albuquerque, que prestou serviço no Pantanal em Corumbá (MS), Cáceres e Poconé, o bioma pantaneiro, caracterizado pela savanização, “é muito frágil e fraco, enquanto área produtiva”.
Albuquerque credita a secular atividade pecuária naquele município à regularidade climática que até recentemente havia.
Com a maciça antropização do cerrado e da floresta, a Amazônia Legal perdeu a característica climática, dividida em duas estações: o inverno e o verão, sendo que o primeiro significa período chuvoso, e o outro, a estiagem.
As reações da natureza, na avaliação do agrônomo, são imprevisíveis e sempre que ocorrem interferem no Pantanal.
O que será o amanhã do Pantanal?
A maior planície alagável do mundo, o Pantanal tem 195 mil km² no Brasil, Bolívia e Paraguai, sendo que a área brasileira é de 124 mil km², dos quais 44 mil em Mato Grosso e a parte maior em Mato Grosso do Sul.
A altitude média é de 100 metros e, em algumas regiõe,s tem cota abaixo do nível do mar – daí se explica seu alagamento.
Os rios Paraguai e Cuiabá são seus principais formadores e ambos recebem pesadas cargas poluidoras.
Esse mundo das águas está seriamente ameaçado.
O rio Paraguai, principal formador do Pantanal, nasce no Chapadão do Parecis, em Diamantino (208 km ao Norte de Cuiabá), e tanto ele quanto seus afluentes, das nascentes a Cáceres, banham áreas de agricultura mecanizada.
Além disso, as águas do polo sucroalcooleiro de Barra do Bugres e Nova Olímpia caem no Paraguai, que, cada vez mais, dá sinais dessa agressão, com o levantamento de seu leito pelos sedimentos do solo com agricultura mecanizada.
Eduardo Gomes/Diário
O casal Clayton e Fernanda, durante uma pescaria no Pantanal
Em agosto de 2020, em Cáceres, o nível do rio era de 72 centímetros. Ou seja, a metade do registrado pela Marinha, no ano anterior, no mesmo período.
São Lourenço, Vermelho e Mutuca, afluentes do rio Cuiabá, banham áreas agrícolas.
Além disso, o Cuiabá é afetado pelo esgoto das duas maiores cidades mato-grossenses: a Capital, que trata 37,09% e lança o restante in natura às águas, e Várzea Grande, com 30% de tratamento, segundo a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), que aponta Cáceres, banhada pelo Paraguai, como cidade em situação crítica no quesito sanitário, com 5,66% de tratamento.
O Bento Gomes é o mais importante rio interior do Pantanal em Mato Grosso e abastece Poconé.
Esse rio também sofre agressão ambiental.
Em janeiro de 2019, houve vazamento de um talude de uma mineradora de ouro em Poconé, que atingiram seu afluente, o Córrego Areão, com uma carga poluidora de mercúrio, arsênio, cádmio e cromo.
Mesmo com a manutenção de matas ciliares, resíduos de agrotóxico de lavouras, da mineração e da indústria sucroalcooleira são arrastados ao Pantanal, no período chuvoso que é comum a todos os municípios mato-grossenses.
Os rios transbordam e, quando as águas baixam, esse material é depositado ao solo pantaneiro.
Há muitos anos ambientalistas, lutam pela criação de um zoneamento socioeconômico rígido para controlar a atividade econômica no entorno do Pantanal.
A agressão afugentou os peixes e, consequentemente, os turistas.
O trade turístico está em parafuso, numa situação que se agrava em razão da pandemia.
Quase todas as pousadas em Poconé baixaram as portas.
As que teimam em resistir enfrentam a pior baixa temporada, com a taxa de ocupação de leitos pouco acima de zero.
Os bares à margem da Transpantaneira, que atendiam turistas dos quatro cantos do mundo, estão às moscas.
No Km 32, a conveniência Barara permanece com o caixa zerado, segundo sua proprietária Lídia Veríssimo, que há 17 anos explora aquela atividade.
“Eles (os turistas) chegavam e esvaziavam os freezers. Nunca vi ninguém beber tanta cerveja quanto aquela gente”, revela dona Lídia, em seu estabelecimento vazio.
No eixo da Transpantaneira, o turismo pesqueiro está seriamente comprometido.
Resta a opção pelo safári contemplativo sobre a vegetação, pois não há mais beleza nos corixos e baías.
No entanto, no vizinho município de Barão de Melgaço, menos atingido pelas chamas, pescadores continuam chegando aos ranchos de pesca por um meio de transporte que foge ao controle das autoridades ambientais: a aviação executiva.
Campos de pouso em dezenas de pontos de pescaria recebem turistas nacionais e internacionais.
Essa região pesqueira no rio Cuiabá é poluída pelo esgoto da região metropolitana da Capital.
Mesmo ciente da falta de peixes no eixo da Transpantaneira, o servidor público estadual Cleyton Nazário insiste em tentar a sorte com o molinete.
Nazário escolhe uma ponte e sobre ela lança a isca.
“Não estou pegando nada”, comentou sem se lamentar ao ser ouvido pelo DIÁRIO.
Afinal, ele sempre faz o percurso de Cuiabá a Poconé, com sua companheira Fernanda Casali, não somente para pescaria, mas principalmente para aproveitarem seu novo motorhome encarroçado sobre uma potente picape Hilux.
Grandes boiadas cruzavam a Transpantaneira, num vaivém incessante, mas nem mesmo essa movimentação se vê.
Pecuaristas prevenidos trataram de encontrar pastagens fora do Pantanal, temendo o inevitável período das vacas magras que se anuncia.
Sem as boiadas sai de cena, o Cavalo Pantaneiro, espécie equina genuinamente nacional e o melhor animal de serviço para a região, por suas peculiaridades: casco resistente ao ‘minhoqueiro’ – irregularidade no terreno causado pelo pisoteio bovino durante as águas altas e que se torna visível na estiagem; e sua capacidade em ‘pescar’ capim no fundo do leito dos corixos.
O Pantaneiro é uma paixão em Poconé e serve de montaria nos jogos culturais da Cavalhada, realizada anualmente naquela cidade.
Segundo Tutu de Arruda, da Fazenda Pombeiro, o que melhor define aquela raça é o ditado poconeano, “Cavalo Pantaneiro; que não tem compra, pede emprestado ou rouba, mas não fica sem”.
Tutu é como se tornou conhecido Oises Falcão de Arruda, que nasceu, reside e quer morrer no Pantanal.
Esse animal está incorporado à história poconeana e a sede da Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Pantaneiro (ABCCP) fica naquela cidade e, de tão importante, todos no lugar sabem seu endereço.
José Medeiros
No ano passado, o Pantanal de Mato Grosso teve parte de sua área devastada pelo fogo
O AMANHÃ – Com 33 mil habitantes, Poconé (100 km ao Sul da Capital) tem na pecuária e no turismo seus dois pilares econômicos.
Os impactos sofridos pelo Pantanal atingem diretamente essas duas atividades, e o município não tem alternativa econômica para se sustentar, pois as mineradoras de ouro ali instaladas geram poucos empregos.
O prefeito Tata Amaral ainda não fez coro com as vozes que criticam as agressões externas sofridas pelo bioma Pantanal e a mesma postura adota a Câmara Municipal.
Estamos a um passo do início da estiagem e as águas no Pantanal se encontram abaixo do nível tradicional.
As agressões externas continuarão pela força econômica das atividades que as provocam.
Riscos de incêndios florestais sobre a agonizante natureza pantaneira são grandes em razão do solo seco, altas temperaturas, ventos fortes e da baixa umidade relativa do ar. O trade turístico opera no vermelho.
A pecuária perde importância e não há nenhum indicativo da criação de política racional de preservação da região considerada pela Unesco Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera.
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