Pantanal continua resistindo, mas até quando? Grandes incêndios mataram bichos, arrasaram a vegetação e secaram corixos na maior planície alagada do mundo
Ciência e sabedoria popular do homem pantaneiro sempre caminharam em direção oposta sobre o chamado fogo para limpeza de invernada no Pantanal. Porém, depois do fogaréu em 2020 e repicado em 2021, o caminho é comum a ambos e nem poderia ser diferente diante da devastação sofrida por aquela que é a maior planície alagada do mundo, e que segundo o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA/UFRJ) teria consumido a vegetação e causado a morte de animais numa área de 1.313.825 hectares (ha) dos quais 348.675 ha em Mato Grosso, e a parte maior, de 965.150 há, no vizinho Mato Grosso do Sul. Em 2022, dependendo das condições climáticas a tragédia ambiental poderá ocorrer pelo terceiro ano consecutivo, pois nenhuma ação prática de abrangência foi adotada e nenhum projeto de proteção externa daquela área está em curso. Para 2022 um fato é previsível: o pecuarista pantaneiro acompanhará o entendimento da ciência e não limpará invernada com fogo.
Em Mato Grosso o fogo atingiu todos os municípios do Complexo do Baixo Pantanal, mas Poconé e Barão de Melgaço foram os mais afetados. Perícias apontam que em alguns casos as labaredas surgiram de problemas mecânicos com tratores agrícolas, acidente com veículo na Rodovia Transpantaneira, manuseio de apiário e até atos criminosos. O cenário das chamas foi agravado pela estiagem prolongada, baixa umidade relativa do ar, ventos fortes e alta temperaturas.
Em Barão de Melgaço brigadistas de uma reserva de preservação permanente do Sesc Pantanal viveram uma experiência sem precedentes. Com as baías e corixos secos ou transformados em lama, antas tinham dificuldade para encontrarem água. Aqueles animais, mesmos ariscos, se aproximaram dos que combatiam incêndios florestais e mataram a sede bebendo a água de suas garrafas térmicas.
Mesmo acostumado ao fogo, em sua quase totalidade dito controlado, o pantaneiro assustou-se com o fogaréu, tanto por sua intensidade, quanto pela dimensão e duração. Na fazenda Pombeiro, em Poconé, o casal Glória e Tutu de Arruda Falcão, ele de 74 anos, entrou em desespero com as chamas que circundaram a casa onde vivem. Ambos com justificada razão para o temor. Nascidos naquela região, nenhum deles viu antes algo tão assustador. O cenário para eles em meio ao fogaréu era de calor insuportável, ar irrespirável pela fumaça das queimadas, ventos fortes que espalhavam brasas e galhos em chamadas; de baixa umidade relativa do ar, visibilidade quase zero; com animais queimados por onde se olhasse – um período assustador não somente por essa situação, mas, sobretudo, pelo homem pantaneiro – figura principal e central daquela imensa planície com 195 mil km² que une Brasil, Bolívia e Paraguai. Sem saber como, quando e onde dariam o primeiro passo, Glória e Tutu levantavam o olhar marejado ao céu num questionamento silencioso ao Senhor – Por quê? Ao lado dela e dele, a cadelinha Nega, com as quatro patinhas sapecadas, não latia e aumentava o silêncio sobre a terra que um dia foi reino das águas e ardia descontroladamente.
Quando do fogaréu o rio Cassange, que passa perto da casa de Glória e Tutu, secou. “Algo que nunca vi nem esperava ver”, observou Tutu. As águas sumiram pela estiagem agravada pelo fogo. A seca também atingiu a cidade de Poconé, que capta no Cassange a água distribuída aos moradores.
Para tentar impedir que se repita o fogaréu no Pantanal, organizações não governamentais, voluntaríos e o governo estadual promovem palestras de conscientização ao homem pantaneiro tanto na zona rural quanto nas cidades. O combate ao fogo exige resposta rápida e em fevereiro de 2021 o governador democrata Mauro Mendes instalou e inaugurou um Pelotão Independente do Corpo de Bombeiros Militar à margem da Rodovia Transpantaneira, na área urbana de Poconé.
O que aconteceu ao Pantanal em parte tem que ser debitado às mudanças climáticas que causam estiagens prolongadas e reduzem o volume das chuvas, o que facilita a ação do fogo na região. Somem-se ao fator climático os efeitos da mineração e garimpo de ouro em Poconé e lavouras mecanizadas nas áreas de cerrado banhadas por córregos e rios formadores da Bacia Pantaneira. Mesmo com a preservação das matas ciliares exigidas pela legislação, ambientalistas e pesquisadores insistem que agroquímicos são arrastados pelas chuvas. Às atividades mineradora e agrícola se junta o esgoto sem tratamento lançado por Cuiabá, Várzea Grande, Cáceres, Jaciara, Barra do Bugres, Alto Paraguai, São Pedro da Cipa, Nortelândia, Arenápolis, Rosário Oeste, Nobres, Rio Branco, Salto do Céu, Lambari D’Oeste, Juscimeira, Itiquira, Porto Esperidião, Reserva do Cabaçal e outras cidades aos rios.
A agressão é externa e nem sempre os pantaneiros são ouvidos para se manifestarem sobre esse fato. Foi assim em novembro de 2021 com a exclusão de representantes da economia pantaneira na audiência pública do Senado, promovida na Assembleia Legislativa pelo senador Wellington Fagundes (PL) para discutir o Estatuto do Pantanal. Insatisfeito e preocupado com a discussão travada fora e por gente alheia ao Pantanal, o presidente do Sindicato Rural de Poconé, Raul Santos, protestou pela Imprensa.
Raul Santos não foi voz isolada. À dele soma-se o protesto do veterinário Ricardo Arruda, diretor da Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Pantaneiro (ABCCP), entidade sediada em Poconé, onde o mesmo é pecuarista. Arruda revelou que uma audiência pública do Senado realizada no começo de dezembro em Poconé, para discutir o Estatuto do Pantanal, não incluiu na pauta o Homem Pantaneiro, O Cavalo Pantaneiro e a pecuária pantaneira. “Discutir o quê”, questionou.
O fogo passou. Deixou um rastro de destruição de animais e biólogos temem que isso provoque a seleção natural das espécies mais fortes para sobrevivência. Também deixou um inventário de cinzas formado por piúvas, pequizeiros, babaçus, lixeiras, aricás, cedros, acuris, canjiqueiras, jenipapos, jatobás, jacarandás, figueiras e outras árvores.
Mesmo agredida a natureza pantaneira não se entrega. A vegetação rebrota. Por todos os lados se vê revoadas, barulho de bicho no mato e as águas se agitam com o vaivém dos jacarés, capivaras, lontras, ariranhas em meio aos cardumes. O Cassange voltou a correr perto da casa de Glória e Tutu. -O Pantanal resiste, mas até quando, se a agressão externa continua?
Comentários