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Repórter News - reporternews.com.br
Internacional
Sábado - 30 de Junho de 2007 às 05:33

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Plantar sementes da democracia nos países muçulmanos em vez de novas guerras e invasões; garantir direitos aos imigrantes para integrar os muçulmanos; e investir maciçamente no combate à pobreza. Esses são os primeiros passos para Estados Unidos e Europa começarem a corrigir vários erros de política externa dos últimos anos, segundo o historiador inglês Timothy Garton Ash.

O professor das universidades de Oxford e Stanford está no Brasil para participar do curso "Fronteiras do Pensa­mento", promovido pelo Cope­sul Cultural, em Porto Alegre, na terça-feira. Leia trechos da entrevista que ele deu à Folha.

Folha - O protecionismo está em alta até entre aqueles que se dizem a favor do livre mercado, como os republicanos americanos. Por que essa causa se tornou tão impopular até nos países que lucram com ele?

Garton Ash - Os benefícios do livre comércio são de longo prazo, mas seus custos são de curto prazo. As fábricas se fecham agora, novos empregos vêm no futuro, e os políticos trabalham com o curto prazo.

Outro problema é que a globalização traz com ela crescente desigualdade, seja na Europa, nos EUA, na China ou na Índia. Surge um pequeno grupo de super-ricos e um enorme grupo de gente continua pobre.

O desempregado do carvão vê o mega rico lucrando. A globalização precisa de uma face humana. Não é questão de punir os super-ricos, mas de combater a pobreza, dar um mínimo padrão de qualidade de vida a milhões de pessoas.

Folha - Os países ricos estão longe de alcançar a promessa de investir 0,7% do PIB no combate à pobreza mundial. Mas o aquecimento global já roubou o destaque dessa causa, até entre celebridades. A pobreza ficou em segundo plano?

Garton Ash - Os mesmos políticos, os mesmos grupos que defendiam a luta contra a pobreza hoje estão na luta contra o aquecimento global. A questão é como fazer as duas coisas simultaneamente.

A ajuda externa dos países ricos é dramaticamente baixa, e os Estados Unidos têm um dos mais baixos níveis dessa ajuda.

Uma das prioridades para o próximo governo recuperar sua relação com o mundo é investir mais em ajuda. Compare os US$ 600 bilhões do orçamento da Defesa com o pequeno orçamento para ajuda humanitária, promoção de democracia, entre outros. É uma piada.

Folha - Críticos do Mercosul dizem que seria impossível criar um bloco harmônico com tantas diferenças, e que o Brasil tem pouco a ganhar com sócios tão pequenos. O exemplo da União Européia serve ao Mercosul?

Garton Ash - A questão é se o Mercosul é um bloco que está se desenvolvendo, rumo a consolidação, para depois negociar com outros blocos, ou se é um projeto que se encerra em si mesmo. Sou favorável a uma futura área de livre comércio do Atlântico, unindo Europa e Américas.

Falo de uma perspectiva européia, pois criar um bloco não tem o comércio como fim em si mesmo, é mais uma garantia de manter estabilidade, de negociar com outros blocos, de fortalecer a região. Nessa visão, o Mercosul é muito útil.

Folha - Se a América Latina é irrelevante no cenário internacional, a presença turbulenta do presidente venezuelano Hugo Chávez é útil para chamar atenção à região?

Garton Ash - Ninguém ganha mais com o Chávez do que com o Lula. Graças ao Chávez, o Brasil de Lula parece ainda mais atraente para investimentos, mais estável.

Há um enorme desafio para a América Latina, que é corrigir a exclusão, a enorme pobreza, a desigualdade. Para Lula, isso se faz respeitando regras do livre mercado. Para Chávez, isso não é claro. O que Chávez personifica é, depois da tentação fascista e depois da tentação comunista, a nova tentação pelo populismo.

Folha - Mas ele não é fruto de uma enorme frustração com a abertura dos mercados da América Latina e a persistência da pobreza regional?

Garton Ash - Bons estudos do banco mundial mostram de forma muito clara que a melhor maneira de tirar milhões da pobreza é plugar à economia global, seja na China, na Índia, ou no Brasil também.

O que falta é investimento maciço em educação básica, saúde, habitação. O mais crítico não é a desigualdade, mas sim a pobreza, a exclusão social.

Folha - Como integrar a comunidade muçulmana na Europa quando cresce o preconceito contra imigrantes e existem posições radicais islâmicas, como no caso de se pedir a morte do escritor Salman Rushdie?

Garton Ash - Essa é a pergunta das perguntas. Como, em um mundo globalizado, pessoas de diferentes culturas podem conviver e aceitar as diferenças. Algo que vocês conhecem bem no Brasil.

As coisas não têm andado bem nos últimos cinco anos porque tem se caracterizado como um choque de civilizações.

Antes de 11 de setembro de 2001, havia um Ahmed ou Shatila, uma garota francesa, um garoto britânico. Agora, antes disso, ele é um muçulmano.

Parte do problema é etiquetar as pessoas como se a religião definisse a mentalidade. Há paquistaneses britânicos, marroquinos espanhóis, ricos e pobres, doutores, engenheiros e comerciantes, com identidades múltiplas.

Todos têm que saber se são cidadãos, que tem os mesmos direitos, deveres, as mesmas oportunidades de todos. Mas não é que acontece no momento na França ou no Reino Unido. Temos que cumprir nossa promessa de dar igualdade de oportunidades.

Folha - A Espanha tem tentado sistemas para regularizar seus imigrantes ilegais, e recebe críticas do resto do bloco como responsável por atrair mais imigrantes. O futuro é fechar as portas e só atrair gente com diploma?

Garton Ash - Há muita gente no mundo que gostaria de se mudar para os países ricos, mas eles não têm como absorver tanta gente. Isso é particularmente verdadeiro na Europa, onde o Estado fornece assistência médica e educação e o bem-estar social faz parte da vida do cidadão. Se dermos oportunidades iguais a todos, há limites para imigração.

O que acho perigoso é a fuga de cérebros, tirarmos os melhores médicos e enfermeiros [de países pobres].

O ideal seria equilibrar três tipos de imigrantes. Receber refugiados genuínos, que fogem de agressores reais, aqueles que nossa economia necessita e os que querem vir para cá.

Folha - O fracasso da reforma imigratória nos EUA é mais uma prova de como os países ricos estão se fechando aos pobres?

Garton Ash - Além do clima de medo, defesa, segurança, da atmosfera da guerra ao terror, o que mais tem a ver nessa crescente desconfiança com os imigrantes é a perda de empregos para a China ou para a Índia, ou qualquer lugar de economia com mão de obra barata.

Esse medo da concorrência é uma atitude muito pouco americana, está fora da tradição do país, que é de receber bem a imigração, de abertura, flexibilidade, comércio livre, mercado aberto. Será uma coisa muito ruim para o mundo se os EUA se fecharem em uma fortaleza.

Folha - O senhor até criticou em artigo os maus tratos que visitantes recebem na hora de tirar visto nos consulados americanos.

Garton Ash - Já escrevi sobre como visitantes são tratados nos consulados americanos, de forma terrível, e a primeira impressão fica.

Como resposta ao 11 de setembro, o governo Bush quis garantir liberdade através de segurança, de forma militar. Essa escolha fracassou.

É claro que você precisa de segurança, mas a alternativa é conseguir segurança com liberdade. Manter os EUA um país aberto e atraente, um país que as pessoas gostam. A imagem e o poder de atração dos EUA perderam muito, dramaticamente, nos últimos 5, 6 anos. Estão no caminho errado. Desejo que no próximo governo vejamos algo diferente.

Folha - Como o sucessor de Bush pode começar a corrigir essa política?

Garton Ash - Os EUA precisam de uma mudança dramática, alguém que seja capaz de dizer "nós fizemos errado, dependemos demais da força militar, da segurança, e agora estamos procurando priorizar outras áreas, diplomacia, democracia por meios pacíficos, cultura, forças de paz". Eles precisam de uma nova cara para os EUA.

Folha - Os atuais candidatos à Casa Branca demonstram ter aprendido a lição?

Garton Ash - Não vejo uma grande mudança em [Rudy] Giuliani ou [John] McCain, ambos defendem a chamada guerra ao terror. No lado democrata, Barack Obama tem o potencial, e o impacto dele pode ser enorme no mundo.

Al Gore também. Ele personifica outro estilo americano de fazer política.

Mas eu duvido que Hillary Clinton consiga fazer a diferença que o mundo espera. Ela é identificada demais com o passado, inclusive com a guerra do Iraque.

Com todo meu respeito por Bill Clinton, há uma sensação no mundo de que os EUA estão virando uma oligarquia. Primeiro veio Bush, depois dois mandatos do Clinton, aí dois mandatos do Bush filho, agora voltar uma Clinton? Pareceria dinastia.

Folha - O projeto de fomentar a democracia no Oriente Médio fracassou. Qual seria a melhor maneira de promovê-la por lá?

Garton Ash - Não se deve fazer isso invadindo países. Os casos de democracias que nasceram após guerras e ocupações são muito poucos e específicos, como a Alemanha e o Japão, mas após Hitler e a Segunda Guerra.

Acho que espalhar democracias têm mais a ver com jardinagem.

Verificar que sementes da democracia existem em determinado país, pacientemente regar e fertilizar. Pode ser uma imprensa independente, organizações de mulheres, partidos políticos ou advogados.

Você vai lá e apóia com inteligência, com compromisso de longo prazo. Democracia não é apenas correr para votar.

Eleições sozinhas não fazem democracia. Em países fragmentados etnicamente, como o Iraque ou a antiga Iugoslávia, as eleições podem aumentar as chances de guerra. É preciso ter paciência.

Folha - Como manter a coerência de patrocinar a democratização quando são necessários aliados como a ditadura do Paquistão?

Garton Ash - A rainha Elizabeth deu o título de cavaleiro ao escritor Salman Rushdie e um ministro paquistanês disse que isso justificaria um ataque suicida. O governador de Punjab, de onde vem a maioria dos muçulmanos britânicos, falou mataria Rushdie se o encontrasse. Vivemos em um mundo globalizado e essas ameaças são ameaças no Reino Unido, não só no Paquistão, não são longínquas.

Sabemos que a Al Qaeda opera em territórios do Paquistão, enquanto o serviço secreto do país tem relações com o Taleban.

Ainda assim, o Paquistão é nosso aliado. Mas não podemos abandonar nosso compromisso de longo prazo de promover a democracia no Paquistão, só em nome das vantagens de uma estratégia de curto prazo. Seria muito infeliz.

Discordo do discurso neocon, comum no governo Bush, de que um ditador pode ser um filho da puta, mas é "nosso" filho da puta.

Folha - Os franceses estão encantados com o novo presidente Nicolas Sarkozy, que roubou a cena na cúpula da União Européia. Os futuros líderes se parecerão cada vez mais a gerentes hiperdinâmicos, como o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, que está sem partido?

Garton Ash - Sarkozy especificamente é um fenômeno. Extraordinariamente dinâmico, notável líder, como o jovem Blair ou o jovem Clinton.

Vivemos em um mundo onde não há clara alternativa às versões do capitalismo democrático que temos. O islamismo não é uma alternativa, como o comunismo e o fascismo já foram.

A questão hoje para os eleitores é qual é o melhor time para gerenciar. E em cinco ou dez anos, nós ficamos cansados desse time e vamos para outro, para novo.

Todos eles falam de mudanças, de quanto são diferentes, mas efetivamente não há grandes diferenças. Nesse mundo, a política vai naturalmente para o centro.

Folha - O novo premiê britânico Gordon Brown terá uma política externa mais independente dos EUA do que teve Tony Blair?

GARTON ASH* - Seu discurso de posse como líder do partido só falou de mudança, mudança, mudança. Após dez anos, só falando assim, pode se ganhar uma próxima eleição. Mas, na realidade, haverá continuidade na maioria das coisas. Uma pequena mudança com os EUA, uma pequenina mudança na política externa e só. Tivemos dez anos de Blair-Brown, agora é Brown, não muda muito.

Folha - Depois de fazer tantas concessões e ficar sem a Constituição, não parece que a UE continuará sem uma voz única e poderosa no mundo?

Garton Ash - Apesar do que dizem alguns analistas, eu fiquei contente com a cúpula da semana passada. Agora a Europa vai ter uma voz clara no mundo, que é o presidente do Conselho e o Alto Representante de Política Externa, representando 27 países, com 500 milhões de pessoas e uma economia que rivaliza com a dos Estados Unidos.

Estou satisfeito com o resultado de uma Europa mais coesa, que será grande parceira de um novo governo americano a partir de 2009. O que os EUA precisam é de um amigo grande o suficiente que faça Washington escutar. Esse amigo só pode ser uma Europa forte.

Folha - Com a oposição de Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, é quase impossível que a Turquia se torne membro da UE em breve. Não é um sinal grave de que a Europa não quer países muçulmanos, até quando são democráticos e laicos?

Garton Ash* - É muito importante para todo o mundo muçulmano ter um grande país muçulmano, com uma democracia secular, na União Européia.

Em termos da chamada "guerra ao terror", a entrada da Turquia na UE é mais importante que o Iraque, que já é um fracasso.

O que importa é a direção que a Turquia tome. Que as coisas melhorem no país, o respeito aos direitos humanos, às minorias, que se mantenham na direção que os tornará membros. Pode levar 15 anos, mas lembre-se que os países da Europa Central, Polônia, a República Tcheca, Hungria, que são claramente e sem discussão países europeus, levaram 15 anos para entrar na UE.




Fonte: Folha de S.Paulo

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