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Internacional
Domingo - 06 de Março de 2005 às 23:27

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Um silêncio absoluto se estende pela zona zero de Banda Aceh ao cair da noite, mas poucos se atrevem a dormir no lugar devastado pelo maremoto de dezembro passado por medo dos fantasmas das vítimas, que se acrescentam à já numerosa lista de superstições indonésias.

Na madrugada da sexta-feira, a mais mística e misteriosa no imaginário islâmico, o silêncio é rompido pelo ruído de vários carros, a maioria deles cheios de jovens que querem desafiar as lendas que circulam em voz baixa entre a população.

"Se alguém morre com sangue, de maneira violenta, se converte em fantasma, e agora muitos morreram assim", diz Zeki, de 21 anos e estudante de economia, ao se referir à tragédia.

A superstição é aumentada pela crença de muitos muçulmanos de que os mortos do maremoto não encontrarão o descanso eterno, já que não foram enterrados olhando para meca.

A maioria dos mais de 125.000 corpos encontrados durante os últimos dois meses foram enterrados em fossas comuns o mais rápido possível, para evitar a presença de epidemias, o que impediu uma sepultura apropriada, de acordo com os rituais islâmicos.

Também não tiveram um enterro formal aqueles que foram incinerados - principalmente nas povoações do litoral ocidental - ou aqueles que foram devorados ou mordidos por cães, animal temido por muitos muçulmanos indonésios.

Segundo Zeki, que esteve na região arrasada de Ule Lhee há várias semanas, com seus amigos, podem se ouvir gritos e ver sombras, embora eles não tenham conseguido distinguir o que diziam nem quem eram.

"Fizemos muito barulho e (os fantasmas) se foram. Mas as pessoas que dormiram lá (em Ule Lhee) dizem que podem ver silhuetas de pessoas vestidas de branco, que pedem ajuda e se dirigem para o mar", detalha.

Em quase toda casa indonésia os fantasmas são utilizados pelos pais para evitar que os filhos entrem em algum quarto ou façam alguma coisa incorreta.

"Não suba aí, que há um fantasma, dizia sempre a minha mãe. E no colégio a mesma coisa, se abríamos armários ou entrávamos no quarto dos professores podiamos ser raptados por um fantasma", explica Meiwan, de 24 anos e locutor de radio.

Por isso, apesar de a religião muçulmana, "fé de 98% da população de Aceh, negar todo tipo de superstições, estas estão muito enraizadas e é difícil que desapareçam", acrescenta.

Sarah Nadia, professora primária, deu à luz um bebê morto dez dias depois da "tsunami" (onda gigante) e desde então garante que o fantasma de sua filha fala com ela todas as noites.

"Nunca tinha acreditado nestas coisas. Sempre ouvi que se a criança morre na sala de parto, seu fantasma fica errante. Mas eu não queria acreditar e não quero, mas ouço vozes", garante.

Por isso, Nadia foi hoje buscar a ajuda da magia tradicional de Hafidh Alfairus, de 37 anos, filho de um dos professores mais respeitados da escola islâmica de Abe, cerca de 13 quilômetros de Banda Aceh.

A diferença de seu venerado pai, Alfairus não leva a vestimenta islâmica habitual e parece mais com uma estrela de rock que com um "dukun" (como são conhecidos os xamans na Indonésia), com seu longo cabelo tingido de vermelho, as várias pulseiras que adornam seus braços e sua camisa ornamentada com desenhos modernos.

Mais de 30 pessoas estavam presentes na sala na qual Alfairus recebe e Sarah Nadia esperava seu turno enquanto o "dukun" sustentava entre suas mãos a foto de uma menina e escrevia carácteres arábicos no verso.

"Sinto muito. Não busques mais, tua filha está morta", declarou Alfairus, depois de uns segundos de silêncio sepulcral.

A mãe, coberta com um véu, começou a chorar e algumas pessoas ofereceram lenços e consolo.

Minutos mais tarde, o "dukun" dá uma garrafa de água sagrada a Sarah Nadia, para que jogue fora de sua casa o fantasma de sua filha morta. A professora agradece a Alfairus, enquanto lhe entrega, de maneira dissimulada, uma nota equivalente a um dólar.

"Minhas visões são rechaçadas pela religião islâmica mas não posso evitá-las. Não posso ficar quieto se acho que posso ajudar a toda esta gente", explica Alfairus.

Poucos duvidam que Alfairus tenha um dom especial, mas entre os deslocados do campo próximo também há os que criticam o fato de o "dukun" estar ficando rico graças a todas as pessoas desesperadas por encontrar seus familiares desaparecidos sob as águas no último dia 26 de dezembro.




Fonte: Agência EFE

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