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A Ressaca das Lembranças
O carnaval acabou. Restam, agora, suas lembranças. Não por muito tempo. Pois elas, as lembranças, serão esquecidas. Logo que a ressaca passar. Tudo nessa vida passa. Igualmente como se dá com as águas a correrem no leito do rio. Não, porém, se elas, as águas, é claro, arrastaram casas e levaram sonhos, em razão das enchentes. Cenas que da memória não desaparecem rapidamente. Aliás, a memória é algo íntimo e individual que guarda os fatos para si, e, no que concerne ao coletivo, o conjunto das experiências vividas.
As experiências são sempre guardadas. Sobretudo quando se vive intensamente um momento, o qual se esperava, ou pelo menos acreditava ser duradouro. Apesar de contraditório. Porque um instante não apresenta longa duração. A menos que ele deixe de ser momento e transforme em situação permanente. Isso, infelizmente, é quase impossível. Uma vez que depende da vontade da outra, e essa outra, pelo seu turno, pode “não estar mais a fim”.
A “vida a dois” passa a ser “vida a um”. Até a condição de estar consigo mesmo, formando o duo, também desmorona. É aí que sente o “sabor” da desolação. Situação que se instaura, de acordo com Hannah Arendt, exatamente quando se perde o recurso ao diálogo interno, quando o si mesmo não mais se desdobra em seu outro.
Resulta-se daí a perda da confiança. Sensação ruim. Agravada com o sentimento da ausência divina. Tudo parece cair a seus pés. Não parece. Pior ainda, tem-se a certeza disso. A fragilidade se faz presente. De igual forma a ausência de força para realizar coisas.
Impotência para se lidar, inclusive, com a rotina diária. Na verdade, não se sabe se existe mais rotina. Pois com o desmoronamento, ela também se foi. Seguiu àquela silueta, gordinha e meiga, que vivia a transitar pelos corredores do cotidiano, sempre bisbilhotando os bolsos da roupa e dando ordens, quando não se punha a brigar.
A saudade é consolada pela foto pendurada à parede. Gozado! Tudo caiu. Porém o retrato dela continua ali. Imóvel, mas com todo seu esplendor e cheio de ternura, como quem diz: “levante-te, reaja e dê a volta por cima”.
Tarefa nada fácil. Isso porque o corpo não mais recebe as mensagens do cérebro, e esse, sequer, se lembra de comandar coisa alguma. Sente-se domado pelo banzo. Pior que a dengue, a qual é sempre desastrosa, pois põe de cama qualquer um que se vê acometido por ela, e acarreta desgaste ao governante desorientado.
Desorientado e sem bússola. Essa é a fotografia fiel do estado em que se vê agora. Restam as passagens da memória. São essas que permitem o reviver e fazem transportar o indivíduo ao tempo vivido. Logo, a pessoa querida aparece à frente, com os mesmos gestos, a deslizar pela casa. A realidade, no entanto, é bem outra. Pois a casa não é mais a mesma, depois que ela se foi. Restam, portanto, as lembranças dela e o seu retrato, obrigatórios para a consciência. A existência de uma vida a dois depende não apenas ser regada a flor que ora brotou, mas igualmente todo o jardim que a rodeia. Lição tardiamente descoberta.
Lourembergue Alves é professor universitário e articulista de A Gazeta, escrevendo neste espaço às terças-feiras, sextas-feiras e aos domingos. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.
As experiências são sempre guardadas. Sobretudo quando se vive intensamente um momento, o qual se esperava, ou pelo menos acreditava ser duradouro. Apesar de contraditório. Porque um instante não apresenta longa duração. A menos que ele deixe de ser momento e transforme em situação permanente. Isso, infelizmente, é quase impossível. Uma vez que depende da vontade da outra, e essa outra, pelo seu turno, pode “não estar mais a fim”.
A “vida a dois” passa a ser “vida a um”. Até a condição de estar consigo mesmo, formando o duo, também desmorona. É aí que sente o “sabor” da desolação. Situação que se instaura, de acordo com Hannah Arendt, exatamente quando se perde o recurso ao diálogo interno, quando o si mesmo não mais se desdobra em seu outro.
Resulta-se daí a perda da confiança. Sensação ruim. Agravada com o sentimento da ausência divina. Tudo parece cair a seus pés. Não parece. Pior ainda, tem-se a certeza disso. A fragilidade se faz presente. De igual forma a ausência de força para realizar coisas.
Impotência para se lidar, inclusive, com a rotina diária. Na verdade, não se sabe se existe mais rotina. Pois com o desmoronamento, ela também se foi. Seguiu àquela silueta, gordinha e meiga, que vivia a transitar pelos corredores do cotidiano, sempre bisbilhotando os bolsos da roupa e dando ordens, quando não se punha a brigar.
A saudade é consolada pela foto pendurada à parede. Gozado! Tudo caiu. Porém o retrato dela continua ali. Imóvel, mas com todo seu esplendor e cheio de ternura, como quem diz: “levante-te, reaja e dê a volta por cima”.
Tarefa nada fácil. Isso porque o corpo não mais recebe as mensagens do cérebro, e esse, sequer, se lembra de comandar coisa alguma. Sente-se domado pelo banzo. Pior que a dengue, a qual é sempre desastrosa, pois põe de cama qualquer um que se vê acometido por ela, e acarreta desgaste ao governante desorientado.
Desorientado e sem bússola. Essa é a fotografia fiel do estado em que se vê agora. Restam as passagens da memória. São essas que permitem o reviver e fazem transportar o indivíduo ao tempo vivido. Logo, a pessoa querida aparece à frente, com os mesmos gestos, a deslizar pela casa. A realidade, no entanto, é bem outra. Pois a casa não é mais a mesma, depois que ela se foi. Restam, portanto, as lembranças dela e o seu retrato, obrigatórios para a consciência. A existência de uma vida a dois depende não apenas ser regada a flor que ora brotou, mas igualmente todo o jardim que a rodeia. Lição tardiamente descoberta.
Lourembergue Alves é professor universitário e articulista de A Gazeta, escrevendo neste espaço às terças-feiras, sextas-feiras e aos domingos. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.
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