Hora do voto facultativo É falaciosa a tese de que a obrigatoriedade do voto fortalece a instituição política
O voto é um dever cívico ou um direito subjetivo? A instigante questão diz muito a respeito da qualidade de um sistema democrático.
No nosso caso, a resposta é dada pela Constituição, que torna o voto compulsório, exceção feita aos jovens entre 16 e 18 anos, eleitores com mais de 70 anos e analfabetos.
Quem deixar de votar e não apresentar justificativa plausível estará sujeito a sanções.
Que implicações haveria para a democracia brasileira caso o voto fosse facultativo?
O primeiro efeito seria a quebra de cerca de 30% na participação da população nas eleições, conforme projeções feitas por estudiosos do sistema eleitoral. Algo em torno de 102 milhões de eleitores, considerando um eleitorado de 146.470.880.
Portanto, não é o voto por obrigação que melhorará os padrões políticos. A elevação moral e espiritual de um povo decorre dos níveis de desenvolvimento econômico do País e seus reflexos na estrutura educacional
Esse volume menor não significaria, porém, enfraquecimento da nossa democracia representativa, como alguns querem comprovar sob o argumento de que o País ainda não alcançou grau elevado de institucionalização política.
Tal abordagem não resiste a uma análise mais acurada. Para início de conversa, há um dado irrefutável que precisa ser levado em consideração: com o somatório de abstenções, votos nulos e em branco, ocorre uma quebra de 25% no resultado geral, conforme tem ocorrido em eleições.
No pleito de 2012, este número foi de 26% no segundo turno. E dos cerca de 31,7 milhões de eleitores aptos a votar nas 50 cidades que tiveram disputa de segundo turno, 19% não compareceram às urnas. Em São Paulo, capital, 19,99% não foram votar.
Em suma, o voto, apesar de obrigatório, queima considerável parcela da votação, sendo razoável projetar para este ano mais de 37 milhões de votos que não entrarão na planilha da apuração. Já o voto facultativo, significando a liberdade de escolha, o direito de ir e vir, de participar ou não do processo eleitoral, abriga a decisão da consciência, calibrada pelo amadurecimento.
Se milhões de eleitores pudessem abster-se de votar, por livre e espontânea vontade, outros milhões compareceriam às urnas com discernimento para sufragar nomes e partidos previamente selecionados.
O processo registraria índices bem menores de votos nulos e em branco, eis que a comunidade política, ativa e participativa, afluiria em peso aos locais de votação.
É falaciosa a tese de que a obrigatoriedade do voto fortalece a instituição política. Se assim fosse, os EUA ou os Países europeus, considerados territórios que cultivam com vigor as sementes da democracia, adotariam o voto compulsório.
O fato de se ter, em algumas eleições americanas, participação de menos de 50% do eleitorado não significa que a democracia ali seja mais frágil que a de nações onde a votação alcança dados expressivos.
Como observa Paulo Henrique Soares, em seu estudo sobre a diferença entre os sistemas de voto, na Grã-Bretanha, que adota o sufrágio facultativo, a participação eleitoral pode chegar a 70% nos pleitos para a Câmara dos Comuns, enquanto na França a votação para renovação da Assembleia Nacional alcança cerca de 80% dos eleitores.
Portanto, não é o voto por obrigação que melhorará os padrões políticos. A elevação moral e espiritual de um povo decorre dos níveis de desenvolvimento econômico do País e seus reflexos na estrutura educacional.
Na lista do voto obrigatório estão os territórios da América do Sul, com exceção do Paraguai, enquanto a lista do voto facultativo é integrada por Países do Primeiro Mundo, os de língua inglesa e quase todos os da América Central.
A facultatividade do voto, ao contrário do que se pode imaginar, animaria a comunidade política, engajando os grupos mais participativos e vivificando a democracia nos termos apregoados por John Stuart Mill, numa passagem de Considerações sobre o Governo Representativo, quando divide os cidadãos em ativos e passivos.
Diz ele: “Os governantes preferem os segundos – pois é mais fácil dominar súditos dóceis ou indiferentes –, mas a democracia necessita dos primeiros. Se devessem prevalecer os cidadãos passivos, os governantes acabariam por transformar seus súditos num bando de ovelhas dedicadas tão somente a pastar capim uma ao lado da outra”.
Valorizar o voto dos mais interessados e envolvidos na política, pela via do voto consciente, pode evitar que conjuntos amorfos participem do processo sem convicção. Alguns poderão apontar nisso posição elitista.
Ao que se contrapõe com a indagação: o que é melhor para a democracia, uma minoria ativa ou a maioria passiva?
A liberdade para votar ou não causaria um choque de mobilização, levando lideranças e partidos a conduzir um processo de motivação das bases.
O voto obrigatório remonta à Grécia dos grandes filósofos, tempos em que o legislador ateniense Sólon fez a lei obrigando os cidadãos a escolher um dos partidos. Era a forma de conter a radicalização de facções que quebravam a unidade em torno da polis.
Ao lado da proibição de abstenção, nascia também ali o conceito de distribuição de renda. Já entre nós, a obrigatoriedade do voto foi imposta nos tempos do Brasil rural. O voto compulsório se alojou no Código Eleitoral de 1932, tornando-se norma constitucional em 1934.
O eleitorado abarcava apenas 10% da população adulta. Temia-se que a pequena participação popular tornasse o processo ilegítimo. Hoje a paisagem brasileira é essencialmente urbana e os desafios são bem maiores.
Resumo da história: o governo promete votar até o fim do ano dois instrumentos da reforma política- a implantação da cláusula de barreira e o fim das coligações proporcionais. Sem dúvida, trata-se de duas disposições que enxugarão a planilha partidária, hoje composta por 33 partidos.
A sugestão é que o voto facultativo também seja inserido na reforma política. O momento é mais que adequado.
O voto não é um dever, mas um direito. E o cidadão deve ter liberdade de usar esse direito, se for o caso, com o não-voto.
Ou com melhor disposição cívica de comparecer às urnas.
GAUDÊNCIO TORQUATO, jornalista, professor titular da USP, é consultor político e de Comunicação.
Twitter: @gaudtorquato
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