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Opinião
Sexta - 05 de Maio de 2017 às 06:52
Por: Leandro Carvalho

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“Baixara a noite com a quietude de que os sertões se revestem, após o desaparecimento dos últimos raios do astro dominador do nosso sistema planetário”. Assim, o então major Cândido Rondon inicia mais uma página do relatório da expedição que chefiava.

Hoje, completam-se 152 anos do seu nascimento e valho-me da data para homenageá-lo com uma reflexão sobre o fascinante primeiro relatório da Comissão Rondon, inteiramente escrito pelo próprio Marechal. Diligente, tudo anotava, dia após dia, construindo uma narrativa extraordinária sobre uma extensa parte desconhecida do Brasil.

A “Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas” nasceu em 1907 e acabou conhecida como Comissão Rondon graças ao destaque da atuação de seu líder. Foi lançada na gestão do presidente Afonso Pena como ‘estratégica’, com objetivos ambiciosos de fazer as linhas telegráficas alcançarem a região amazônica, empreender a inspeção das fronteiras brasileiras com o Peru e a Bolívia, e proceder ao inventário científico do território percorrido.

Considerado por pesquisadores e brasilianistas como uma obra raríssima, o primeiro volume dos relatórios da Comissão Rondon foi republicado em 2015, com o apoio da Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso (SEC-MT), por ocasião dos 150 anos de nascimento de Rondon, e está disponível para download gratuitamente no site da própria Secretaria. A leitura desta publicação traz uma visão completamente nova deste personagem, cheia de movimento, poesia e humanidade, não encontrada nos livros e publicações biográficas.

Formação

Disciplinado, Rondon adquiriu sólida formação na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, e na Escola Superior de Guerra, onde, em 1890, tornou-se engenheiro-militar e bacharel em Matemática e Ciências Físicas e Naturais. Buscou sempre grandes desafios e para isso se preparou com afinco. Leu tudo o que estava disponível, de relatos dos viajantes estrangeiros a manuais de línguas e cultura indígena. Quando a expedição começou, em 1907, trazia a experiência da Comissão Construtora da Linha Telegráfica de Cuiabá ao Araguaia, onde atuou na década de 1890, e da Comissão de Linhas Telegráficas em Mato Grosso, de 1900 a 1906. Da primeira, que transcorreu numa região habitada pelos Bororo, lembrava sempre que a postura de Gomes Carneiro em não agredir os índios de nenhuma forma acabou permitindo a realização das instalações.

Sabia nomes científicos de centenas de espécimes vegetais e animais, e possuía um conhecimento sofisticado de diversas línguas indígenas, corrigindo imprecisões de nomes dados erroneamente como, por exemplo, o riacho Uátiauina, chamado pelos seringueiros de Rio da Água Quente, mas por Rondon retificado para Rio do Calor, já que ‘Uatiá significa calor e não quente’. Sobre os temidos Nhambiquara, mais um exemplo, registrou no primeiro relatório uma informação encontrada por ele num manuscrito de 1843 localizado no arquivo da presidência do Estado de Mato Grosso: “Nhambiquara, nação grande e brava, habita nas cabeceiras e margem do São João da Barra ou rio Apiacá, tributário do Juruena pelo lado oriental. É também antropophaga e não tem indústria nenhuma”.

A pé, a cavalo, ou de barco, abrindo piques e picadas, Rondon seguia mata adentro, fazendo medições e nomeando rios, vales, cachoeiras, paragens e cidades. Nomeou Porto Esperidião, por exemplo, em homenagem ao Engenheiro de Minas, Esperidião da Costa Marques, falecido em 1906 em Vila Bela, chamada à época de cidade de Mato Grosso, quando regressava de viagem do baixo Guaporé. Nomeou também o Salto de Utiarity, a partir do nome dado pelos índios Pareci a um pequeno gavião que pousou sobre uma árvore no exato momento em que registravam uma fotografia da bela cachoeira.

Nesta época, a ‘civilização’ ia até a cidade de Diamantino. Pouco a frente, estaria a ‘última fazenda de Mato Grosso’, pertencente ao Major Frederico Josetti. Poucos haviam se aventurado adiante, enfrentando sertões povoados de índios ferozes, canibais, responsáveis pelo desaparecimento dos exploradores de seringais que ousaram se aventurar nestas paragens. Rondon utilizava como referência mapas e informações antigas, de trabalhos coloniais, com ‘indicações vagas em escritos velhos ou criações fantásticas’. Assim, com a colaboração de sua equipe, começou a reescrever os mapas do Brasil a partir do solo palmilhado e visto pelos próprios olhos.

Disciplina

Os dias começavam às quatro da manhã, com o reavivamento da fogueira. Todos os expedicionários despertavam ao som de clarins e cornetas, e também pelos Zotiakiti, instrumentos de guerra Pareci que anunciam a alvorada. Os amistosos Pareci irmanaram-se a Rondon na expedição, auxiliando o trabalho de reconhecimento inicial de cada território. Em torno da fogueira, ficavam os oficiais apreciadores do mate, incluindo o chefe da expedição, distribuindo as ordens e providências para o prosseguimento dos trabalhos. Às cinco horas, soava o alarme da marcha.

As expedições saíam com mais de uma centena de homens, em torno de cem bois cargueiros, dezenas de burros de carga, burros de sela, cavalos para o serviço de gado, bois de corte e cães. Era necessário que a expedição exibisse um grande número de expedicionários para que os índios não se animassem em atacá-los. Sofriam privações excruciantes tanto na ida como na retirada. O sal, farinha, arroz, açúcar, café, banha, e outros ingredientes básicos para a subsistência do grupo, iam pouco a pouco acabando. Para compensar, o grupo de ‘meladores’ se esforçava para extrair o máximo de mel de abelha para suprir a falta de açúcar, alimento fundamental para sustentar as grandes caminhadas.

Buscavam subsistência na mata com frutas como a jabuticaba, mangaba, guapeva, airú, tocary do cerrado, coco de indaya, os palmitos de guariroba, mel de abelhas, e todas as caças que cruzassem o caminho. A alimentação proteica do grupo dependia da habilidade dos caçadores, que sabiam estratégias as mais variadas de captura dos animais da região. Iam parar no braseiro perdizes, jandayas, torcazes, corujas, curicacas, tatús, emas, seriemas, papagaios, veados e tantos outros. Sorte do grupo quando havia um pouco de ôlôniti (bebida fermentada, espécie de ‘chicha’ usada entre os Pareci) para aliviar as agruras da vida na selva.

Cientistas

Rondon cercou-se de proeminentes cientistas, brasileiros e estrangeiros, para acompanhá-lo nas viagens. Esses homens realizaram trabalhos de grande importância em áreas diversas como a cartografia, botânica, geologia, zoologia, antropologia e etnografia de populações indígenas e sertanejas. O ilustre antropólogo Edgard Roquette-Pinto que foi membro da Comissão em 1912, costuma dizer que "a construção da linha telegráfica foi o pretexto. A atividade de exploração científica foi tudo". Participaram também grandes personalidades como Adolpho Lutz, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Arthur Neiva e Carlos Moreira, este último o único pesquisador da rede que pertencia ao Museu Nacional e que, na época da Comissão, atuava como zoólogo.

Dos estrangeiros, é interessante o caso do geólogo e etnógrafo alemão Karl Carnier, que pediu ao governo alemão, logo após ter se formado, que o ajudasse a vir ao Brasil para participar da Comissão. Conseguiu e juntou-se a Rondon em 1908, tendo passado as primeiras semanas de convivência com o grupo de expedicionários em clima de deslumbramento, com a oportunidade de visitar uma aldeia Nhambiquara, 'enfrentando matas espinhosas apenas para experimentar a sensação de penetrar a mata em companhia de um selvagem'. No entanto, exausto e com problemas nos pés, Carnier foi desligado da Comissão meses depois, fixando-se em Montevidéu, no Uruguai.

Respeito

Estes grandes cientistas admiravam o sentido de preservação e respeito pela natureza e povos tradicionais que tinha Cândido Rondon, não consentindo, por exemplo, que se levasse a menor peça etnográfica dos aldeamentos. Autorizava apenas que os artefatos encontrados fossem fotografados. O mesmo com os animais, alguns vistos pela primeira vez, como o caso do pássaro maxalalagá, ‘com porte de um massa barro, bico alongado como o da saracura, e a parte superior parda-escura e a inferior verdoenga’. Capturavam-nos apenas para fotografar e depois soltavam.

Este mesmo respeito Rondon nutria pelos povos indígenas. Estava ali estabelecendo um novo padrão de relacionamento que resultaria numa ampla política indigenista de abrangência nacional, a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Rondon rompeu com o senso comum que considerava os índios ferozes e antropófagos, para realizar uma 'pacífica incorporação à civilização' de diversas sociedades indígenas, protegendo-as do extermínio a que estariam sujeitas pelos violentos contatos com os seringueiros da região amazônica. Rondon colocava o sentimento de justiça acima de tudo, ‘encarando com meditada reflexão a santa causa dos indígenas, quatro séculos recalcados sob o aguilhão do mais requintado egoísmo de nossos antepassados’, dizia.

Mesmo sobre a mais real ameaça, os princípios se mantinham, como no dia em que sentiu um sopro perpassando seu rosto, como um pássaro que cruzasse rápido o caminho. Olhou para o lado e viu uma flecha ainda vibrante com a ponta mergulhada no chão. Estavam sendo atacados por índios Nhambiquara! Índios guerreiros, inimigos dos Pareci e do homem branco, este povo não queria relação de espécie alguma porque “sempre que os encontram, perseguem a tiros de espingarda, com o intuito de os expurgarem das regiões que vão conquistando para a exploração da seringa”. Rondon saltou da sela e escondeu-se por trás do cavalo. Em seguida, a pena de outra flecha roçou sua nuca. A doze passos, dois guerreiros retesavam seus arcos, apontando para Rondon, com um ‘olhar tão duro como as pontas das flechas’ que eles pretendiam lhe cravar. A última flecha disparada acabou acertando o couro da bandoleira, tendo Rondon escapado da morte por pouco.

Depois do susto, os cães saíram no encalço dos índios, juntamente com os praças mais exaltados. Alguns minutos depois, ouviram os uivos dos índios e concluíram que havia mais duas linhas, muito reforçadas, que poderiam conduzir-lhes ao fim. Contra a vontade de todos, Rondon organizou a retirada reafirmando o propósito da missão. Não havia chegado até ali para conquistar índios e sim para trazer até o Juruena o reconhecimento indispensável para a construção das linhas telegráficas. Deveriam evitar a guerra a todo o custo. Escreveu em seu diário: “Antes de tudo por dever de humanidade e depois em consideração ao próprio serviço que aqueles sertões nos levava, era-nos vedado abrir lutas. A nossa principal preocupação deve ser, sistematicamente, o estabelecimento das melhores relações com os habitantes do território que invadimos. Em uma palavra, só pela paz e jamais pela guerra deveremos penetrar pelos sertões”.

Era uma época em que não predominava o respeito pelos povos indígenas. Rondon buscava a convivência pacífica com os povos indígenas. Desde a primeira expedição, tinha clara a postura que todos deveriam ter. Escreveu no primeiro relatório que “ainda mesmo que alguém da Expedição seja ferido pelos guerreiros do Juruena, nenhuma represália deve ser movida contra os atacantes, no seu justo direito, defendem as suas terras e as suas famílias. Sejamos fortes contra nossos sentimentos de vingança, e tenhamos abnegação bastante para resistirmos a tentação do orgulho que é a perdição da Humanidade. Assim fortalecidos pelos nossos pendores altruísticos, marchemos desassombrados para o [rio] Madeira porque a vitória não falhará. Viva a República!”.

Essa orientação contrastava com os sentimentos belicosos dos soldados, tropeiros e vaqueiros, para quem os índios se nivelavam aos animais ferozes, suscetíveis de destruição. Nos documentos da expedição, em especial nas ‘ordens do dia’, lemos ordens expressas de ‘respeito absoluto às suas [Nhambiquara] vidas e às suas propriedades, garantidas pela lei fundamental da República, sem violação aos seus hábitos, nem desacato as suas famílias. É completamente proibido o incêndio de suas aldeias, o saque de suas roças, usurpação do menor utensílio que lhes pertença, sendo dever de nossa parte incutir-lhes o exemplo de bons costumes, impostos pela nossa civilização’.

Rondon estava começando a escrever história. Ainda não era o grande Marechal que o mundo conheceria depois. Possuía a patente de Major de Engenheiros, depois promovido a Tenente-Coronel em plena viagem, em 05 de agosto, que recebeu com muita humildade dizendo que era daqueles que “só se é verdadeiramente feliz quando a felicidade não aflige e nem ofende a ninguém”.

Devoção

Cândido Rondon era um servidor público devotado, com o forte compromisso em defender a pátria, fazendo com que abrisse mão de sua família e vida pessoal para servir. Casado com Francisca Xavier, em 1892, com quem teve sete filhos, passava longos períodos de prolongada ausência. Para aplacar a saudade, quando os expedicionários encontravam pouso, Rondon botava para rodar um graphophone Odeon, que fazia questão de levar nas viagens, e a voz do famoso tenor italiano Enrico Caruso ecoava pelas matas mato-grossenses, sobrepondo-se ao enlouquecedor zunido dos mosquitos. Além dos ‘cantos aveludados’ de Caruso, levou a ‘incomparável’ flauta de Patápio Silva e as marchas marciais da famosa Banda do Corpo de Bombeiros e da Brigada Policial do Rio de Janeiro.

Rondon sonhava em integrar o Brasil, garantindo as fronteiras e o direito de todos os habitantes deste território coexistirem de forma pacífica. O primeiro relatório, escrito integralmente pelo próprio Marechal, nos revela um homem extraordinário, muito a frente de seu tempo, com qualidades e um espírito pátrio que nos deveriam servir de exemplo. Depois de alcançar a mais alta patente do exército brasileiro, seu nome batizou o Estado de Rondônia e diversas cidades brasileiras. Foi por três vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz (a primeira em 1925 pelo físico Albert Einstein, a segunda em 1953 pelo escritor francês Henri Charles Badet, autor do livro “Rondon - Charmeur d’Indiens”, e a terceira em 1957, pelo Explorer’s Club de Nova Iorque), e recebeu inúmeros outros prêmios e homenagens. O menino de Mimoso, Distrito de Santo Antônio de Leverger, pantanal mato-grossense, ganhou o mundo e foi reconhecido como poucos brasileiros. Agora, após as celebrações do sesquicentenário de seu nascimento, ainda precisa ser (re)descoberto pelos brasileiros.

Leandro Carvalho é secretário de Estado de Cultura de Mato Grosso e maestro titular da Orquestra de Mato Grosso.



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