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Opinião
Sábado - 05 de Fevereiro de 2022 às 10:55
Por: NEILA BARRETO

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O astrônomo português que viajou por algumas vezes à Província de Mato Grosso, Dr. Francisco José de Lacerda, deixou registrado que, (...) no tempo das secas (de junho a setembro), com muita dificuldade se obtém ali um pote de água.

O córrego da Prainha, que antigamente conduzia grande volume de água, fica hoje completamente seco, e apenas nos tempos das chuvas conduziam grossas enxurradas, devendo-se isto a derrubada das antigas matas que povoam as suas cabeceiras.

Hoje, esse mesmo córrego carrega para o rio Cuiabá toneladas de lixo e esgotos a contaminar o pantanal mato-grossense, as lindas praias do Clube Náutico, as de Santo Antônio de Leverger (MT), antes piscosas, limpas, as quais os cuiabanos e mato-grossenses utilizavam como lazer. Hoje não existem mais.

O Prainha está envelopado com uma longa camada de cimento. Em seu entorno não existem mais arborização. O córrego das estrelas, denominação dada pelos índios.

Na disponibilização de água doce potável na vila e na cidade de Cuiabá certamente interferiram fortemente as secas e, também, as enchentes. Tratar de secas e enchentes numa perspectiva histórica exige levar em conta dois aspectos pelo menos: como as interferências humanas nos ambientes podem provocá-las (ou pelo menos contribuir para isso) e como as sociedades humanas lidam com elas, como as percebem, como as manipulam, como as relatam, como produzem diversificadas narrativas sobre elas.

Lendo documentos dos séculos XVIII e XIX (e do século XX), venho percebendo que não há uma concepção única de seca ou de enchente. Um estio mais longo e chuvas antecipadas nas cabeceiras podem receber esses nomes.

Às vezes o relato de uma autoridade visa claramente afirmar sua competência pessoal, seu preparo para diagnosticar e apresentar soluções, aumentar seu poder e até sua remuneração. Outras vezes, certas descrições são claros manifestos políticos contra a parcela da elite local que está no poder. Aos poucos, comparando os documentos, penso ter conseguido evitar (em parte, pelo menos) certa “credulidade documental”. Na água sempre esse poder foi exercido até no ato de abrir ou fechar uma torneira. Pura simbologia.

Sobre as secas na vila e na cidade de Cuiabá, existem referências que merecem anotação. Entre 1724 e 1728, ocorreu prolongada seca. Essa demorada seca atingiu também parte do Nordeste brasileiro. Na Bahia, em 1724, o vice-rei Vasco Fernandes César de Meneses (irmão do governador Rodrigo César de Meneses) escrevia ao rei: (...), mas é certo, continua a falta d’água e se Deus nos não acudir com ela, não só não haverá açúcar, nem tabaco, mas, por falta de frutos, pereceremos de fome, informa o historiador Carlos Rosa.

Nas Minas Gerais, correspondência de 1725 refere “uma grande seca, que Deus por quem é nos acuda”. Em Cuiabá, no ano de 1726 no “Treslado de um termo de conferência que a respeito dos Reaes quintos fez o superintendente thenente-coronel João Antunes Maciel” mostrava que: (...) e como o dito ajuste foi feito na supuzição de que haverião ágoas pera se tirar ouro e contribuirem todos a pagar, e não tenhão havido estas e se achava este povo incapacitado(...), atendendo ao estado em que se achava este povo pela falta de ágoas (...).

As secas também influenciaram na política de distribuição das terras que visava também não descuidar das atividades agrícolas (...).

Em Cuiabá, esta parece ter sido provocada pelas estiagens prolongadas (...), onde a conhecida piscosidade do rio Cuiabá deve ter atenuado, substancialmente, os efeitos da seca e da carestia. Hoje essa piscosidade está ameaçada.

Depois, a seca de 1747-1749: [1747] (...) uma seca que se não viu chuva em todo este ano nem no seguinte, até os fins de mil setecentos e quarenta e nove, que pôs estas povoações em extrema miséria, faltando mantimentos, com o que não só padeceram as gentes, como também os animais, arderam os campos e os matos, que se não viu uma folha verde e só se viam cinzas e fumaças, discorreu José Barbosa de Sá.

Sobre esta, Augusto Leverger, o Barão de Melgaço reiterou o que está nos “Anais do Senado da Câmara de Cuiabá”: “Não houve chuva neste ano [1747] e nem nos dois seguintes”.

Na virada dos anos 1820 para os anos 1830 outra persistente seca. E nos anos 1851, 1863, a população cuiabana sofria com a falta de água., além das de 1868, 1870, 1871, 1882.

À época dominava a seca: “a seca há anos tem sido tal, que tem feito gemer a humanidade e se tem conduzido água de lugares bastantemente longe”. É possível que a seca dos anos 1830, restringindo muito o acesso à água doce potável contribuísse para o aumento da violência em ambientes públicos.

Em 1831, correspondente da Matutina Meiapontense residente na cidade de Cuiabá referia a falta de água potável ao favorecimento de constantes desentendimentos e cabeças e potes quebrados. Na cadeia da cidade, ainda situada no “Largo da Matriz”, prisioneiras passavam sede: A cadeia desta cidade está pela má construção diametralmente oposta. (...) na prisão de mulheres (...) só existe um Pote para água, por isso sofrem por muitas horas, sede e falta para fazerem comida.

Cuiabá, aos 15 de fevereiro de 1831. Assinam: Joaquim Almeida Falcão, Joaquim Alves Ferreira, João Alz. Ferreira e Antônio de Paula Fleury.

Nesse mesmo ano de 1831 a Câmara Municipal da cidade de Cuiabá investiu 50 oitavas de ouro na manutenção da “Fonte do General” na praça da Mandioca atual Caetano de Albuquerque e 800 oitavas na “Fonte do Rosário”, atual avenida Historiador Rubens de Mendonça, objetivando preservar as águas explicitas para a população e para os animais. Hoje completamente destruída, soterrada, no entanto a nascente ronda por lá.

Em 1833 o conselho geral do governo da Província interpelava a câmara da cidade de Cuiabá sobre privatização de matadouro “vizinho à fonte detrás da Matriz”, atual Catedral Metropolitana de Cuiabá.

Embora a questão à época não fosse a da proximidade entre matadouro e fonte, seria interessante investigar como a administração pública, municipal e provincial, encaravam tal proximidade. Hoje sabemos o quanto mal faz ao meio ambiente. E a contaminação dos resíduos advindos dos frigoríficos nas águas doces cuiabanas. Ali pelo lado da Várzea Grande-MT sempre há um problema desse nas águas do rio Cuiabá.

Em 1844 Teodoro José da Costa Roriz (ou Rodrigues) recebeu 86 mil e 950 réis, pela “construção do Chafariz da Prainha”. Nesse sentido, as autoridades demonstrando preocupação com a necessidade de implementar as obras públicas, em relação a água doce potável tentam mais uma vez o encanamento das águas do ribeirão Mutuca (Chapada dos Guimarães-rodovia) para Cuiabá, conforme percebemos na citação: Não sendo suficientes nas ocasiões de seca as Fontes Públicas, que ora existem nesta capital, que cresce a olhos vistos, parece-me indispensável que se trate quanto antes de encanar para um novo Chafariz alguns dos córregos ou ribeirões perenes das vizinhanças da cidade, devendo preferir-se o ribeirão denominado Mutuca.

Quatro anos depois, em 1849, novos estudos de campo e elaboração de plantas para canalizar e trazer as águas do Mutuca para atender à demanda de água potável na cidade de Cuiabá. Em 1849 – projetei introduzir na cidade água da Motuca, distante daqui 3 léguas mais ou menos, com suficiente altura, e para onde os antigos a tinham trazido por meio de um rego.

Encarreguei o primeiro Tenente de Engenheira Pedro Dias Paes Lemes do plano, nivelamento, e orçamento da obra. Pela enorme quantia que montou o orçamento parou o trabalho, conforme registro do Barão de Melgaço. Em 1851 o governo provincial nada ainda conseguira fazer quanto à canalização do Mutuca. O mesmo em 1857. Nunca conseguiu. Trocou de plano, rumou para o rio Coxipó, mas, à época não deu certo.

As enchentes mereceram também registros. Como a de 1780, “excessiva cheia” do rio Cuiabá. Esta destruiu as margens do rio, o engenho e os sobrados dos capitães José Gomes da Silva e Agostinho Rodrigues. E as de 1812 que destruiu a chácara do professor Zeferino Monteiro de Mendonça e 1852. Em Cuiabá as enchentes segundo Virgílio Corrêa Filho, baseado no livro “El Rio Paraguai”, de Luís Tossini estava sujeita apenas às cheias do rio homônimo e seus tributários de montante, não costumavam ultrapassar o mês de março, embora se observem os primeiros repiquetes em princípios da quadra chuvosa.

A de l865, caracterizada como maior enchente com destruição de prédios do segundo distrito (Porto) com grande prejuízo no comércio, combinada com o início da guerra do Paraguai, que por sua vez contribuiu também para o desabastecimento da capital. Outras foram em 1867, a de 1895 que atingiu as ruas do segundo distrito e a de 1905, de curta duração destruindo as casas dos bairros Ana Poupino, Acampamento e Chacrinha, atual Avenida Beira Rio. Hoje na região tudo mudou. Restaram apenas lembranças.

O saneamento merece atenção dos governantes.

Neila Barreto é jornalista, mestre em História, membro da AML.



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