Filme de famílias brilhantes Fernanda Torres superou as mais importantes estrelas do cinema internacional
Exceto as criaturas miseráveis, “...pessoas de alma bem pequena”, do tipo das que são retratadas no “Blues da Piedade”, de Cazuza e Frejat, os demais brasileiros estão em estado de felicidade plena com o troféu Globo de Ouro, conquistado por Fernanda Torres, que superou algumas das mais importantes estrelas do cinema internacional.
Para isso, nossa atriz interpretou Eunice Paiva, em “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens Paiva, deputado federal de 1963/64, pelo PTB/SP, assassinado pelos ditadores/torturadores de 64.
Para o desconforto, mesmo que in memoriam, de muitos dos que sustentaram aquele regime, bem como aos apequenados de alma que ainda flertam e se identificam com líderes autoritários, dispersos alhures, inclusive no Brasil, se Eunice, nos últimos anos de vida, perdera a memória por conta do alzheimer, paradoxalmente, hoje, cada um de nós está podendo recuperar um pouco da memória de um passado ainda tão próximo; passado, a bem da verdade, dolorido, tantas foram as suas crueldades, como a que se abatera à família Paiva, que teve de ver, em janeiro de 1971, Rubens ser retirado de sua casa, por agentes da ditadura militar, para um depoimento, do qual nunca mais voltou.
Mas se Rubens nunca mais pode voltar da forma como desejava sua família, hoje, ele está de volta; como de volta está Eunice. E ambos estão – por aqui – tendo um retorno retumbante, até pouco tempo inimaginável. Ambos estão nas telas dos cinemas do mundo inteiro! Quem diria?! A arte, de novo, driblou a censura; de seu jeito, aliás, delicado como foi tratada essa violência política no Brasil, pisoteou o autoritarismo, desnudando-o a quem quiser (re)ver uma parte de nossa triste realidade vivida por quase 25 anos do século passado.
De forma direta, das artes envolvidas, a literatura foi a primeira a contribuir com todo esse processo de resgate. Num misto dos gêneros biografia e memória, Marcelo escreveu a história de sua família, tendo sua mãe como personagem central, que nunca desistiu de lutar para que o Estado brasileiro desse uma resposta sobre o sequestro e o assassinato de Rubens.
Das páginas do livro, um roteiro já premiado na Itália – que hoje vive sob a égide de uma premiê de linhagem autoritária – foi elaborado para ser materializado nas telas dos cinemas e, posteriormente, acessado de outras formas.
Do excepcional roteiro, a força da arte dramática, literalmente, entrara em cena. Como nos geniais espaços em branco das páginas de “Un Coup de Dés” (Um Lance de Dados), de Mallarmé, Fernanda Torres atinge um nível de interpretação para a personagem Eunice em que o silêncio e os olhares falam mais alto/forte do que quaisquer palavras em diversos momentos da narrativa do filme. Aliás, esses dois elementos (os vazios e/ou os brancos) também se estendem a Fernanda Montenegro que, em poucos minutos, no epílogo, sem falar uma palavra sequer, diz tudo o que a personagem, já com o alzheimer avançado, poderia expressar: ápice das emoções de um filme por inteiro emocionante.
Emoção fílmica que teve ainda uma luxuosa trilha sonora. A música jamais poderia estar ausente. E música de gêneros e artistas tão diferentes entre si, como Erasmo e Roberto Carlos, Tim Maia, Gal Costa, Tom Zé, Os Mutantes, Serge Gainsbourg, Jucas Chaves, Nelson Sargento, Donny Hathaway, Caetano Veloso e Cesária Évora.
Assim, desse mosaico de manifestantes e manifestações artísticas, a cultura brasileira parece ter se vingado um pouco dos tantos ataques desferidos pelo ex-presidente da República. Das insanidades por ele verbalizadas, posto que o silêncio não lhe seja o forte, destaco sua homenagem ao coronel Brilhante Ustra, um dos mais cruéis torturadores de todos os torturadores do regime de exceção, quando da exposição de seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Todavia, BRILHANTE, de verdade, é o filme de Walter Salles. BRILHANTE é a oportunidade ser contemporâneo de famílias BRILHANTES, como a de Eunice e Rubens Paiva, de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, que, ao se juntarem no BRILHANTE palco do mundo das artes, estão nos presenteando com o BRILHANTE sentimento de brasilidade, que vai bem além, mas muito além do ato de fixar ou fincar uma bandeira na porta de uma casa, da varanda de um apartamento, no pórtico de um comércio ou na entrada de uma porteira qualquer, de uma estrada qualquer, de uma fazenda qualquer...
Como na história da criança e da bacia, salve nossa democracia!!! Suas imperfeições precisam ser denunciadas e combatidas, mas sua essência, preservada. Sempre. Aquela “vida de gado, de um povo marcado, povo feliz”, cantada por Zé Ramalho, não nos pertence. Em suma, ainda estamos todos aqui, juntos com Eunice, Rubens, Marcelo, Fernandas, Walter...
Roberto Boaventura da Silva Sá é Dr. em Ciências da Comunicação/USP.
Comentários