Coração de Estudante
Porém, os mitos acabam superando a razão e entram num terreno subjetivo de percepção. Por mais que sejam criticados ou elogiados, sua imagem resgatada sobreviverá limpa e pura além desses julgamentos. Dante enquadrava-se nessa categoria.
Talvez, para auxiliar na compreensão aos olhos dos mais jovens, cumpro meu dever, às vezes amargo, como agora, de fazer registros de vivências. É o mal dos jornalistas mais antigos escrever a crônica dos fatos e falar de amigos quando eles partem para pregar em outras paragens da vida.
Em 1982, Dante elegeu-se deputado federal, depois de quatro anos como deputado estadual. Foi um ferrenho crítico do regime militar e do governo estadual. O ambiente brasileiro em 1983 quando ele assumiu, era tenso. Os militares já estavam no poder há 19 anos e esvaziara-se o propósito intervencionista de 1964. A economia descia morro abaixo com as seguidas crises internacionais do petróleo.
O Congresso Nacional, muito esvaziado pelo peso do Ato Institucional n° 5, uma espécie de Constituição autoritária paralela, o mal-falado AI-5, discutia muito, mas não era uma oposição real ao regime. Havia grandes parlamentares nos quadros legislativos. Dante inventou uma emenda à Constituição que instituísse as eleições diretas em 1985, já para o mandato presidencial seguinte, que deveria começar em 1986.
Absolutamente impossível que uma emenda desse teor conseguisse as assinaturas necessárias. Ganhou. E ganhou também o apadrinhamento do poderoso presidente do PMDB, deputado federal Ulysses Guimarães. Foi às ruas na forma de comícios e abalou o marasmo político do país. Em pleno regime militar, sob intensa ditadura, conseguiu-se reunir 700 mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo. Outros comícios transformaram a emenda das Diretas-Já no estopim que movimentaria a Nação e em 1985 poria um presidente civil na presidência da República. “Coração de Estudante”, singela música de Milton Nascimento se transformaria no hino das Diretas: “quero falar de uma coisa. Advinha onde ela anda? Deve estar dentro do peito, ou caminha pelo ar. Pode estar aqui do lado, bem mais perto que pensamos. A folha da juventude é o nome certo desse amor”.
O regime militar mexia-se perplexo, porque não estava habituado a lidar com a opinião pública livre. A Rede Globo de Televisão, profundamente vinculada ao regime, tentou ignorar o movimento e amargou o grito dos comícios que até hoje persegue a sua própria história: “O povo não é bobo. Abaixo a Rede Globo”. A emissora teve que usar o seu poder e cobrir os enormes comícios das Diretas pelo país afora. Em25 de abril de 1984 a emenda foi à votação no plenário da Câmara dos Deputados e foi derrotada por uma margem pequena de votos quando comparada com o peso da pressão contrária dos militares do governo.
Não importava. Nascia ali o espírito da redemocratização. A Nação estava contaminada pela idéia e amadurecera a necessidade de eleger, ainda que pelo voto indireto do Congresso Nacional, o presidente da República. Tancredo Neves, uma figura emblemática do PMDB, seria o escolhido, por sua infinita capacidade de conciliação. Morreu antes de assumir, mas o Brasil estava democratizado.
Em 1985 o general João Baptista Figueiredo, o último presidente militar, cansado e desmotivado, suspendia a vigência do AI-5 e deixava que a sociedade se movimentasse em busca da redemocratização. No Brasil inteiro o nome de Dante de Oliveira continuou vinculado à idéia de que foi emenda das Diretas-Já quem iniciou a redemocratização, quando polarizou a Nação para o ideal da democracia.
A essa altura, Dante candidatava-se a prefeito de Cuiabá e dava início a uma carreira política fértil. No governo de Mato Grosso, reelegeu-se em 1998 e saiu para disputar o Senado em 2002. Foi derrotado e entrou numa fase política muito ruim. Acompanharam-no críticas e acusações. Sofreu duramente nesses três anos. Mas, por sua história política pessoal, quem o conheceu sabe que essa fase ruim ele via como uma travessia.
Mas, não chegou a realizá-la. Certamente, estará em outros palanques, em outros comícios, como no hino das Diretas-Já: “e há que se cuidar da vida. E há que se cuidar do mundo, tomar conta da amizade. Alegria e muito sonho espalhados pelo caminho...”
Meu querido amigo Dante. Tomo emprestado de Milton Nascimento um verso da canção e lhe dedico em despedida: “Mas renova-se a esperança, nova aurora a cada dia...”
Onofre Ribeiro é jornalista em Cuiabá desde 1976, amigo pessoal de Dante de Oliveira
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