Ensinando padre-nosso a vigário
O debate não é novo. Pode o Estado interferir na vida privada de seus cidadãos? Sem querer fazer um histórico sobre a conhecida trajetória de conquistas cívicas e a construção jurídica da intimidade, gostaria de lembrar uma discussão mais recente: pais norte-americanos gozam do direito de matricular os filhos apenas em colégios que ensinem o criacionismo, contrariando o evolucionismo darwiniano. Ou simplesmente tirar as crianças da escola a promover a educação doméstica.
Ignorância? Cultura? Estupidez ou liberdade? O governo francês, de tão secular, pretendia proibir a cobertura islâmica na cabeça das alunas na rede pública de ensino. Vejamos outra situação - o que dizer do sacrifício ritualístico de animais nas religiões de origem africana? Crueldade? Crime? Ou simplesmente cultura? E o que dizer das vaquejadas, das soltas, das touradas, das rinhas de galo e dos rodeios?
Não é prosaica a discussão sobre a contraposição entre mentalidades bizantina e contemporânea. O tema central persevera tão íntegro quanto polêmico - a tensão entre regulamentação estatal e a privacidade, ambos constitucionalmente inseridos nos ordenamentos constitucionais dos países democráticos.
Nem é preciso chegar ao ponto de citar costumes mórbidos de alguns chineses ao consumir os restos de fetos humanos ou a herança ameríndia de conservar múmias dos parentes na própria casa. Tais práticas não são menos legítimas por serem minoritárias, exóticas ou chocantes. A autodeterminação leva a jogar dentes no telhado, dar à criança água na casca do ovo e o costume de alguns comerem o cordão umbilical do próprio filho. Bizarro ou não, é cultura de uma minoria que, nem por isso, deve ser desrespeitado sob qualquer pretexto ou teoria.
As soluções jurídicas costumam variar. Soluções domésticas intermediárias são válvulas de escape para temas delicados - circuncisão, doação de sangue, poligamia, substâncias alucinógenas, entre tantos outros. No Brasil, há quem proíba doação de sangue para os filhos acidentados; há os que consumem entorpecentes a fim de alterar o estado mental no curso de rituais religiosos; há quem mutile seus filhos no nascimento. E daí? Pode o poder público intervir numa norma cultural ou religiosa? Em matéria de privacidade, será que não pode o Estado meter o bedelho em alguns temas e pode noutros?
Recentemente, o governo brasileiro entendeu por bem sancionar medida que, em tese, proíbe os pais de intervirem fisicamente na educação dos próprios filhos. Diante de uma hesitante opinião pública que se furtou a ovacionar a norma, adiantaram-se autoridades a declarar que a lei não criminaliza a palmada e o cascudo. Quer apenas servir de paradigma para a sociedade perceber o caminho "certo" na educação de crianças e adolescentes. E o que será o "certo"? E quem diz o que é o "certo"? Sobretudo, o "certo" para a intimidade doméstica de todos...
Temos uma descarada interferência privada no poder público nacional e, agora, inaugura-se a regulação pública da vida privada brasileira! Alguns pedagogos, psicopedagogos, psicoterapeutas professam não ser saudável a intervenção física familiar. O governo acolheu a tese, normatizando o tema. Confundiram-se alhos com bugalhos. A tortura paterna, aquela de brutalidade atroz já é crime, estando regulamentada uma série de medidas protetivas estatais contra os responsáveis pelos castigos degradantes. E a palmada? O beliscão? O cascudo?
Como distinguir a tortura da palmada educativa?, perguntariam. Melhor seria extinguir qualquer forma de palmada, seja ela forte, fraca, corretiva ou humilhante. Afinal, limites podem ser estabelecidos através de muitos outros métodos, priorizando o diálogo, as limitações de benefícios etc - rematam. Particularmente, não importa exatamente o mérito dos argumentos de parte a parte da biblioteca que mais convém. Importa, em realidade, se há intervenção estatal na intimidade do cidadão brasileiro. Hoje, a "orientação" é sobre educação. O que será amanhã?
Fico achando graça da contradição de alguns educadores sobre os limites de intervenção familiar. Enquanto esconjuram castigos físicos, incentivam o controle ostensivo ou dissimulado do conteúdo da programação das mídias acessadas pelos filhos. Beliscão não vale, mas espionagem é recomendável. Não sei se essas soluções são mais modernas ou simplesmente mais hipócritas.
Eduardo Mahon é advogado
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