Uma nódoa na Constituição
Não há nada de mais perverso e cruel ao futuro de uma sociedade que almeja a plenitude democrática do que a manutenção de práticas discriminatórias entre as diversas categorias de trabalhadores.
Lamentavelmente, é isso o que vemos acontecer hoje no Brasil no que se refere à absurda desigualdade entre os direitos dos empregados domésticos e dos demais trabalhadores.
Por esse motivo, e na perspectiva de avançarmos na consolidação da democracia e na efetivação de um projeto nacional de desenvolvimento - com soberania, sustentabilidade e verdadeira igualdade de oportunidades para toda a nossa sociedade -, apresentei Proposta de Emenda à Constituição (PEC), 478/2010, que revoga o parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal, para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais.
Há muito, o Estado brasileiro é cobrado a ter a iniciativa de corrigir um processo histórico de discriminação aos trabalhadores domésticos. O próprio governo federal chegou a discutir, em 2008, através de um grupo multidisciplinar que envolveu a Casa Civil e os ministérios do Trabalho, Previdência Social, Fazenda e Planejamento, mudanças na legislação desta imensa categoria profissional do Brasil, formada por 6,8 milhões de trabalhadores.
A intenção do governo era encaminhar uma PEC ao Congresso Nacional até o final de 2008. Como isso não aconteceu, resolvi avocar essa responsabilidade, pois considero ser inaceitável convivermos com um sistema normativo que permite a existência de trabalhadores de "segunda categoria" - uma verdadeira nódoa na Constituição Cidadã de 1988.
Por incrível que pareça, a nossa Carta Magna possui uma inequívoca contradição: proíbe qualquer tipo de discriminação, ainda que salarial; no entanto, o parágrafo único do próprio artigo 7º, ao mesmo tempo em que elencou 34 direitos fundamentais laborais aos trabalhadores urbanos e rurais, dispôs aos domésticos apenas dez, criando verdadeira discriminação social contra estes trabalhadores, mantendo-os como se fossem "menos iguais".
O meu propósito é claro e transparente: mudanças no regime jurídico dos domésticos, permitindo-lhes acesso obrigatório ao FGTS, ao seguro-desemprego, ao pagamento de horas extras, adicional noturno, salário-família e ao benefício previdenciário por acidente de trabalho, prerrogativas que estão excluídas do rol dos direitos a eles assegurados no parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal.
Os argumentos contrários à concessão desses direitos são de longa data conhecidos: o aumento da proteção legal elevaria os encargos sociais e trabalhistas, o que conduziria a categoria à informalidade e diminuiria as oportunidades de emprego. É importante ressaltar que a Constituição de 88 avançou ao estender todos os direitos trabalhistas aos empregados rurais, e a realidade mostra hoje que não houve prejuízo para a economia nacional.
É fato que a informalidade é grande nessa categoria de trabalhadores, uma vez que apenas 27,8% dos domésticos possuem registro em carteira (dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD) de 2006). Mas é duvidoso que isso possa ser atribuído ao "excesso de legislação", até porque atualmente a legislação é mais flexível do que a do trabalhador comum e nem por isso há um aumento de formalidade em relação à média dos demais trabalhadores; ao contrário.
Não há como conciliar democracia com as sérias injustiças sociais, as formas variadas de exclusão e as violações reiteradas aos direitos dos trabalhadores domésticos que ocorrem em nosso País. A sociedade brasileira está empenhada em promover uma democracia verdadeira. E é preciso dizer a essa mesma sociedade que o Poder Legislativo tem um compromisso real com a promoção dos direitos sociais de nossa população.
É chegada a hora, portanto, de o País se livrar de uma das mais indignas e execráveis heranças do regime do trabalho servil (pelo qual a nossa civilização infelizmente passou), que é a discriminação jurídica dos trabalhadores brasileiros.
Não podemos deixar que a apatia, a indiferença e a discriminação contaminem a nossa democracia.
*CARLOS BEZERRA é deputado federal (PMDB-MT). Governou o Estado de Mato Grosso de 1987 a 1990.
dep.carlosbezerra@camara.gov.br
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