Máquinas
Ibraim Sued foi um marco na história do colunismo social brasileiro. Foi fotógrafo, jornalista e publicou sua coluna social ao longo de 45 anos na imprensa carioca. Mandou e desmandou na Cidade Maravilhosa nas décadas de 50 e 60. Dono de um estilo todo próprio, às vezes até um tanto agressivo, criou o seu próprio idioma. Depois os intelectuais editaram um dicionário, que foi um sucesso de vendas, para as pessoas traduzirem o que liam e ouviam do turco.
Ele escrevia no mais famoso jornal do país – e se apresentava no mais importante canal de televisão. Naquela época o Rio de Janeiro era o paraíso sonhado por todos nós. Ser citado em uma pequena notinha de rodapé na coluna do Ibraim era motivo de orgulho para toda a família. A notícia era recortada e colada no álbum de recordações. Vivíamos o apogeu do colunismo social – todas as camadas sociais liam Ibraim. As lindas mulheres eram chamadas de máquinas ou locomotivas. E como tinha mulher bonita! Natural, sem silicone, botox ou lipoaspirada! As mais badaladas, sem dúvida alguma, eram Leila Diniz e Danuza Leão. Duas máquinas que dispensam maiores apresentações.
O Rio era o centro cultural do Brasil, e as novidades se espalhavam pelo país com o selo de qualidade da Cidade Maravilhosa. A Praça Tiradentes, com os dois mais tradicionais teatros cariocas, sempre superlotados, era o ponto que melhor acolhia toda a efervescência cultural da época. Os famosos espetáculos montados por Walter Pinto brilharam por longos anos naqueles palcos. Desde os tempos do Noel Rosa, eram muito comuns as “brigas” musicais, várias das quais pertencem hoje à nossa cultura. Quem nunca ouviu a resposta do Noel quando se sentiu ofendido pelo Wilson Batista? – “Quem é você que não sabe o que diz meu Deus do céu que PALPITE INFELIZ...”. Nesta época ocorreu o fim do casamento da cantora Dalva de Oliveira com o compositor Herivelto Martins. O Herivelto começa a briga musical com CABELOS BRANCOS... - “Respeitem ao menos meus cabelos brancos...”. Dalva retruca com QUE SERÁ, - “... da minha vida sem o teu amor...” E emendando com o TUDO ACABADO, “...entre nós hoje de madrugada....”
As máquinas, (Leila Diniz e Danuza Leão) de última hora resolveram assistir ao sucesso do momento, um espetáculo da Dalva, num teatro da Praça Tiradentes. O bilheteiro informa: “- lugar só no segundo pavimento do teatro, e na última fila.” Elas topam. O show - “ERREI SIM”, inicia. Cada música cantada era um delírio total do público. A Danuza, a certa altura da peça, faz um comentário para a Leila: “- você reparou que lá na frente só tem bichas?” Leila responde sem respirar: “- e aqui no fundo só putas?”
Por aqui atualmente também temos os nossos espetáculos. O último foi a compra de certas máquinas – no sentido literal da palavra - que por longos dias estiveram expostas ao público numa conhecida avenida da cidade. Foi um show amplamente divulgado pela imprensa local e nacional. Os responsáveis pelo patrocínio do espetáculo lembram muito os expectadores da última fila do teatro, na visão da Leila. Prostituem-se simplesmente pelo prazer que o dinheiro propicia. É transitório o show? É. Mas a beleza também é. Então a ordem é aproveitar ao máximo enquanto há condições para isto. Para Danuza, pular em frente à artista famosa era ser bicha, no sentido mais preconceituoso e inaceitável. Para o governo que veio para quebrar paradigmas o povo que aplaudia a beleza de um espetáculo, era logo jogado na vala da desqualificação moral. Assim como a resposta da Leila foi fulminante assumindo ser prostituta como a Danuza, em um mês do governo tampão, mesmo chamando-o governo de continuidade - para desespero do governador-candidato - as máquinas estão aí, com todo o seu simbolismo, difícil de tão cedo ser esquecido pelo povo. A ofensa, principalmente a preconceituosa, é de difícil cicatrização.
Outros espetáculos-escândalos estão aparecendo, e incomodando os freqüentadores da última fila do teatro da vida. Oh, Vida! Enquanto isso os mafiosos, preguiçosos, incompetentes e ladrões, apelidados um dia pelos poderosos, na frente do palco do noticiário continuam pulando e aplaudindo, não a voz maravilhosa da Dalva, no seu espetáculo ERREI SIM, mas a Polícia e a Justiça.
* GABRIEL NOVIS NEVES é médico e ex-reitor da UFMT
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