Entre a Seleção e o Brasil Acho que entendemos que nem só de Copa vive o brasileiro
Subjugados pela Fifa, estamos em plena Copa 2014. De todas, a mais distante ao nosso povo, sempre tão apaixonado por futebol, pela Seleção, pelo Brasil. Que paradoxo!
Desde que fomos “escolhidos” para sediar o Mundial, só escrevi sobre o tema (em “Traseiro e honra”, em 12/03/2012), quando alguém da autoritária Fifa disse que o Brasil precisava levar um chute no traseiro.
Naquele momento, dividi nossa existência em duas eras (a.C e d.C: antes da Copa e depois da Copa) e defendi nossos traseiros; afinal, chutá-los é tão ofensivo quanto tapa na cara.
Mas de lá para cá, os chutes e os tapas foram muitos. Alguns vieram pelos discursos. O mais emblemático foi quando o “Fenômeno” disse que Copa não se faz com hospitais, mas com arenas. "Acho que entendemos que nem só de Copa vive o brasileiro. Este pode ser o maior legado da Copa 2014. Quem diria?"
Todavia, outras “pérolas” surgiram. Inusitadamente à cultura de nosso povo, conhecido como desdenhoso por sua história, todas foram sendo armazenadas no fundo de nossa memória coletiva. Coisa rara!
Junto com os discursos, as obras (a maior parte necessária) e seus inevitáveis transtornos: os desvios! Calçadas, pátios de postos de combustíveis, de supermercados... viraram ruas e avenidas.
Mas antes, as desapropriações, a derrubada dos ipês, dos flamboyants... Tudo no chão! Para que a modernidade se instalasse, patrolar era preciso... Lembrei de Adoniran Barbosa: “cada táuba” /cada árvore/ “que caia, doía no coração”.
A dor disso tudo só seria atenuada com o tempo e com o término de todas as obras; e bem realizadas! Nada podia dar infiltrações, alagamentos, desmoronamentos, mortes de trabalhadores...
Contudo, apenas algumas obras – lentamente – foram surgindo. Pior: não sem mortes de trabalhadores e vários senões técnicos: infiltrações, desmoronamentos, alagamentos... Enfim, muitos problemas. Muito dinheiro malgasto.
Além disso tudo, as falcatruas, os superfaturamentos foram sendo revelados paralelamente com a ausência de recursos suficientes à saúde, educação, transporte, segurança... O desmonte dos sistemas de nosso país foi doloridamente escancarado. A matemática financeira foi-nos esfregada na cara.
Esse somatório de coisas nos deixou tristes, envergonhados, indignados... São muitos os sentimentos construídos ao lado de cada obra de mobilidade urbana, de cada milionária arena, de cada brasileiro morto num hospital por falta de recursos ou por falta de segurança pública, de crianças em escolas sucateadas, da assustadora violência...
Por conta desse conjunto de coisas e sentimentos, algo inusitado está acontecendo: a maioria não entrou no clima da Copa. A mídia nos bombardeia, implorando por nosso envolvimento com a Seleção; e a maioria continua no silêncio. É uma linda e difícil demonstração de resistência patriótica de nosso povo, que não deixou de amar a Seleção.
Por isso, raras são as bandeirolas, os muros, as ruas pintadas. Comparando com outras copas, dos mais de duzentos milhões, poucos estão se “fantasiando” de brasileiro. É inacreditável o que estamos vendo e vivendo. É como se a Copa não fosse aqui.
De minha parte, ouso interpretar isso. Entre torcer pela Seleção e pelo Brasil, a maioria – apaixonada por nosso lindo país – optou sabiamente torcer pelo Brasil. Isso já é uma vitória. Queremos um país melhor, sem corrupção.
Se a Seleção ganhar, muitos – é óbvio – ficarão felizes, mas sem o entusiasmo banal da Copa de 70. Se perder, o chororô será menor do que o da Copa de 50.
Acho que entendemos que nem só de Copa vive o brasileiro. Este pode ser o maior legado da Copa 2014. Quem diria?
ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ é doutor em Jornalismo pela USP e professor de Literatura da UFMT.
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