Memórias de um câncer
No final do ano de 2014, após sentir alguns incômodos no estômago e intestino e de tomar alguns remédios sem resultados satisfatórios, o médico gastroenterologista me encaminhou para fazer um exame chamado colonoscopia.
Este exame consiste num procedimento com sedação, onde se introduz via anal uma espécie da sonda no intestino para identificação de doenças neste órgão e retirada de pólipos(protuberâncias) que se formam no intestino, normalmente até os 50 anos. Pólipos estes que se não forem retirados pode degenerar em câncer.
O resultado do meu exame foi positivo: adenoma carcinoma. Lembrei-me da música da Maísa chamada “meu mundo caiu”. Incômodos e sofrimentos à parte. O diagnóstico foi confirmado, no início de janeiro/2015, quando foi marcada a cirurgia para o final daquele mês.
No entanto, ainda fui consultar uma especialista, em São Paulo-SP, que confirmou o resultado e me disse que eu fui descuidado, não tendo feito o referido exame até os 50 anos, quando poderia evitar o diagnóstico atual.
Eu sou uma pessoa cuidadosa com a minha saúde, tanto é que fazia tratamento ortomolecular há mais de 15 anos. Em suma, tive vontade esganar o meu médico. Eu já estava com 60 anos e tal exame deveria ter sido feito há 10 anos. Todo médico com um pouco de esclarecimento sabia dessa verdade menos o meu. Sorte e falta de sorte não é para qualquer um.
O meu estado emocional estava abalado como de qualquer pessoa portadora de um câncer. Entretanto, os médicos são unânimes em afirmar que 90% do câncer de intestino é curável, desde que descoberto a tempo.
Preparei-me para a cirurgia que aconteceu no dia marcado. Seria feita, por meio de vídeo, entretanto, por conveniência cirúrgica, me custou um corte na barriga de cima até embaixo. Lá se foi o meu sonho de me tornar Mister América!
O procedimento cirúrgico foi um sucesso. Temos um centro de excelência em tratamento de câncer no Hospital Santa Rosa, em Cuiabá. Entretanto, o médico disse que o câncer tinha migrado para o apêndice e ele teve de tirar este órgão.
Isto significava mais alguns meses de quimioterapia, pois não se sabia se o câncer tinha migrado por estar próximo de outro órgão (intestino grosso) ou se a contaminação para outro órgão (apêndice) foi pela corrente sanguínea, o que, se verdadeiro, seria indicativo do início de uma suposta metástase.
Eu descobri antes da cirurgia que o meu tratamento seria feito apenas com remédios genéricos, a serem cobertos pelo plano de saúde. Existe uma controvérsia enorme a respeito da total eficácia desses remédios genéricos. A diferença entre os preços dos remédios genéricos e os de origem são astronômicas, o que deixa qualquer paciente em polvorosa.
A única explicação plausível, feita por um médico, era de que os remédios genéricos têm apenas 70% do princípio ativo do remédio de origem, e por isso eles são mais baratos. Alguns médicos afirmam que a eficácia é a mesma.
Entretanto, depois de pagar por mais de 20 anos um plano de saúde não seria crível que quando adoeci seria tratado por remédios genéricos de eficácias duvidosas, na minha avaliação. Coloquei os meus talentos de rábula para funcionar e consegui uma liminar que me garantiu todo o tratamento com remédios de origem. Este episódio é bem a cara do nosso Brasil varonil.
A quimioterapia é um tratamento penoso. Não é fácil. De imensos incômodos, avanços e recuos. É preciso persistência para se submeter a ela durante um ano inteiro. No entanto, não tive nem o desprazer de ficar sem cabelos, pois no meu caso não sofri este efeito colateral.
O tratamento foi encerrado em fevereiro/2016, e já fiz todos os exames nestes últimos sete meses e fui liberado para retirar inclusive o cateter onde as infusões eram injetadas. Segundo o médico, eu estou curado e vou aparecer por lá só daqui a seis meses para os acompanhamentos de praxe.
“Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora do caráter, que a recomendaria a todos não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco”.( Carl Sagan - Bilhões e Bilhões, pag. 232, edição Companhia das Letras 1997).
Eu não cheguei à quase morte mais passei por uma situação que me levou a muitas reflexões sobre a existência e as consequências das nossas atitudes e dos nossos atos. Bem como do nosso papel aqui neste vale de lágrimas. Não sou de grandes e nem de pequenas emoções.
Acho que harmonizo e equilibro essa questão. Não chorei. Não lamentei e nem pedi perdão e, muito menos, me converti a qualquer credo. Apenas agradeço a minha família, a todos parentes e amigos que rezaram e tiveram fé na minha recuperação.
Procurei fazer o que já vinha fazendo há algum tempo ou seja encontrar-me comigo mesmo. Diz o poeta: “Haverá um dia em que encontrarás contigo mesmo, será o pior dos seus dias ou seu momento maior”. De olhar os meus olhos no espelho e perguntar: E agora Renato?
Ninguém chega ao outono da vida sem ter feito escolhas estúpidas. Sem errar. Sem equivocar-se. Sem mágoas. Sem ressentimentos. Sem arrependimentos. Sem cometer desatinos de toda sorte. Ficamos normalmente com um passivo pesado. E o meu foi atacado por mim e em grande parte resolvido. Os remédios quimioterápicos me deixavam “elétrico”. Nunca trabalhei tanto!
Continuei a acertar os meus tropeços para tentar zerar o passivo da minha existência. Creio que o acerto de contas é por aqui mesmo, pois temos que retornar como viemos: zerados. Caso contrário iremos ter penas severas em outro lugar ou em outra existência. Pelo sim ou pelo não, eu preferi o caminho de libertar minha consciência, liquidando débitos e créditos.
Hoje, trabalho bem menos. Faço exercícios e cuido mais da minha saúde. Dedico mais à família. Estou pensando em me mudar para Passárgada. Podem ter certeza: vaso ruim não quebra! Ainda penso em fazer uma revolução!
Renato Gomes Nery é advogado em Cuiabá. E-mail: rgnery@terra.com.br
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