Nossos demônios...
“Não encha a sua memória com rancores para que não falte espaço para os momentos bonitos.”
(Fiodor Dostoiésvski)
Não há demônios como, em geral, os pintamos. Nada de chifres, ou línguas bífidas, ou olhos flamejantes. Os verdadeiros demônios habitam, secretamente, as mentes. Escondidos, vivem sussurrando perfídias, semeando discórdias e provocando insanidades. Dostoiésvski, dez anos antes de Nietzsiche, no fabuloso livro “Os Demônios”, afirma que somos atormentados não pelo que vemos; mas por aquilo que imaginamos e concebemos. Nesse livro “profético”, escrito no final do século XIX, Fiodor expõe as chagas do autoritarismo – tanto de direita quanto de esquerda.
Mesmo que incompreendido pela intelectualidade daquela época, “Os Demônios” já prenuncia os desastres do Socialismo Real, aliás, que nada tem do Socialismo Científico de Marx e Engels, é – antes de tudo – uma sandice autoritária que matou milhões de pessoas. Porém, essa obra pode revelar os “Gárgulas” que, apesar de recônditos, permeiam nosso ser. Mas deixando de lado o senso comum da interpretação dessa produção excepcional do escritor russo, passemos à individualidade, aos dilemas existenciais que dilaceram a existência humana e são revelados por ele.
Willian Shakespeare, em “A tempestade” diz: “O inferno está vazio, todos os demônios estão aqui.”, do mesmo modo, a personagem Nikolai Stavróguin encerra em si todos os conflitos existenciais, todos os demônios. E são esses dilemas externalizados em atitudes – que vão da megalomania, passando pelo estupro, até ao assassinato – que levarão Stavróguin dar cabo à própria vida. Um niilista com questionamentos metafísicos que o transformariam em um dos ícones dostoievskianos quando o assunto é a ambiguidade: “Parecia ter a beleza de uma pintura, mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de repugnante”.
Já o simbolista Cruz e Sousa, ao tratar da angústia, no soneto “Cárcere das Almas” vaticina: “Ah! Toda alma num cárcere anda presa/ Soluçando nas trevas, entre as grades/ Do calabouço olhando imensidades,/ Mares, estrelas, tardes, natureza. (...) Ó almas presas, mudas e fechadas/ Nas prisões colossais e abandonadas/ Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!/ Nesses silêncios solitários, graves,/ Que chaveiro do Céu possui as chaves/ Para abrir-nos as portas do Mistério?!”. Aqui também o Hades e Belzebu não são exteriores; ao contrário disso, habitam a mente humana (provocando inquietações lacerantes) e estão, fatidicamente, presos por grilhões invisíveis materializados nas dúvidas que afligem o ser e o levam a buscar respostas em um improvável plano metafísico.
Em tempos e mares revoltos, como lidar com esses tormentos que nos asfixiam? Óbvio que não existe nenhuma resposta definitiva e, também, as milhares existentes são parciais. Resta-nos apenas um resquício, um lampejo de esperança, porque, como assevera o próprio Dostoiévski, em “O Idiota”: “A delicadeza e a dignidade é o próprio coração que ensina e não um mestre de dança”.
SÉRGIO CINTRA é professor de Redação e de Linguagens em Cuiabá
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