Quando chegar a hora de morrer
A visão estava turva, meu olhar em movimento. O sangue caia ao chão enquanto escorria quente da minha cabeça. Parecia que, enfim, chegara minha hora. Um descuido, para quem é cauteloso ao extremo, ao limpar o ar condicionado causara o acidente doméstico. A meta era retirar uma peça. Entretanto, o ventilador de teto, que antes estava desligado, agora vez a sua vítima. Um impacto, um milésimo de segundo, tudo parou.
Depois da pancada, do susto, do olhar pálido da esposa que estava por perto, a mão levada à cabeça comunicou: não, não era uma bobagem. Estava em cima da cama, desci. Olhei o chão, havia o líquido vermelho claro, seguindo um curso que eu não podia controlar. Uma toalha chegou. Alguns passos foram dados até o banheiro. Três metros percorridos, uma longa viagem se seguiu.
Eu não havia ligado o ventilador, mas assumi que acidentes acontecem. Era minha toda a culpa. Afinal, disputas não faziam mais sentido. Perguntei se não era hora de chamar ajuda. Ouvi palavras técnicas que não compreendi, da enfermeira-esposa que me ajudava enquanto lamentava o ocorrido. Estava atordoado, não sabia o tamanho da lesão. Tentava não desmaiar. Talvez estava partindo.
Pensei nas crianças. Uma delas apareceu, exortei para sair do quarto. Não podia expor ela àquela terrível cena. Tentei me acalmar. Senti algo estranho, difícil de descrever, mas que deve estar ao alcance das pessoas que estão a caminho ou quase partiram dessa vida. O cheiro, as cores, o som do silêncio, tudo mudou e ganhou uma dimensão atemporal. Disse, "está tudo bem, acontece". Repetia pra mim mesmo como um mantra.
O chuveiro lavava o corte atrás da cabeça, tingia o chão. Parte da minha essência física se esvaindo pelo ralo enquanto tentava não desmaiar. Tenho medo de sangue. A água mostrou que o corte não era tão profundo, tranquilizando minha alma. Talvez o anúncio de uma nova chance. "Não André, você não vai morrer agora", disse com sensatez a minha consciência atordoada. Algo que minha esposa provavelmente já tinha percebido desde o início do episódio.
Tenho a certeza de que as coisas não acontecem por acaso. Acredito que o espírito não acaba com a deterioração da matéria. Carrego convicções religiosas sobre isso. Entretanto, mentalizar algo é diferente de vivenciar. Na hora em que estamos diante da possibilidade de morrer, seja por uma doença grave, passagem de um ente querido ou acidente que a vida nos oferece como prova, o pragmatismo da vida nos arrasta a experienciar aquilo que antes estava limitado ao inteligível.
O novo coronavírus está fazendo vítimas diariamente. Entendo que haja angústia em relação às questões financeiras e econômicas, pois empregos e bens materiais são importantes. No entanto, na hora de morrer ninguém pensa nas contas a pagar ou no dinheiros a receber. O que mais queremos é ter alguém ao nosso lado nessa hora, algo que a Covid-19 impede expressamente.
Partir é necessário, todos nós sabemos disso. Mas, tenha em mente que estar amparado nesse momento é algo muito importante, tanto para quem fica, quanto para quem vai. Felizmente eu vivenciei somente um susto, que resultou num pequeno corte numa área vascularizada da cabeça. Mas, para quem enfrenta uma UTI com Covid-19 está num caminho que pode ser sem volta.
Faça o que puder para evitar essa doença. Ficar sozinho na hora de ir embora desta vida pode ser uma experiência muito difícil. Faça o que puder para evitar isso. Esforce-se para amar ao próximo e a si mesmo. E o mais importante, se puder, fique em casa. Para que quando chegar a hora de morrer possa estar com pessoas que te amam ao seu lado.
André Luiz Barriento é jornalista, mestre em comunicação e mediações culturais e graduando em direito.
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