O chão da vida é móvel
Nestes tempos de pandemia da Covid-19, em que afloram tantos questionamentos, compartilho com o leitor algumas reflexões. Quando o mundo foi colocado no modo “stand-by” com a medida preventiva de afastamento social, lembrei-me da meditação dinâmica criada pelo mestre espiritual indiano Osho, que consta de várias etapas. Uma delas, a penúltima parte, é parar de repente na posição em que se está, qualquer que seja. “Stop!” é o comando dado em voz firme e clara após intenso movimento do corpo. Os praticantes são pegos de surpresa, às vezes em posições fáceis de permanecer em completa imobilidade corporal, enquanto em outras se revelam bem mais difíceis parar e aceitá-las. A intenção é ir além das reações da mente e liberar padrões de comportamento. Neste momento de dificuldade, foi como se eu ouvisse a palavra “stop” ecoando no planeta inteiro, não apenas no imenso salão branco do Buda Hall na Osho Multiversity, em Pune, Índia, anos atrás.
De repente, é preciso parar, pausar e ficar em casa, local que se tornou o melhor do mundo para estar durante a pandemia. Lá fora, por mais belo e interessante que seja um lugar, ronda o perigo de contágio e transmissão do coronavírus, enquanto nossa casa, por mais simples que seja, representa o abrigo seguro para a proteção individual, que reflete no cuidado familiar e coletivo. A imagem que me adveio desde o início, para quem segue a orientação de ficar em casa, é a Arca de Noé.
O momento é muito fértil em nível espiritual, uma vez que oferece oportunidades ímpares de observação e ponderação em relação a vários aspectos de nossa existência. Abre, sobretudo, a possibilidade de maior entendimento e clareza sobre a natureza da vida, a natureza da mente e expansão da consciência.
Ficar em casa transmite o convite para que a humanidade também adentre a casa interior e talvez muitos tenham a disponibilidade de transformá-la em um lar acolhedor. Uma chance imperdível de cuidar desse espaço, que muitas vezes, pelo descaso com a vida interna, tornou-se igual a uma casa abandonada, empoeirada, contaminada e identificada com o vírus da mente reativa, causa de inúmeros adoecimentos em nível físico, emocional, mental e espiritual.
Na observação do cenário atual, que varreu certezas do palco do mundo e descerrou com extraordinária velocidade a cortina das incertezas e instabilidades, vivificam-se em mim as seguintes palavras do mestre espiritual (com o qual pude conviver na Índia) Kiran Kanakia:
"A vida é mudança e movimento. Não há nada permanente na vida. Se há, o tempo todo, alguma coisa mudando e se movendo, não existe perfeição. Existe movimento. Existe mudança. Essa é a natureza da vida, a qual é insegura, incerta e tem um futuro desconhecido.
O chão da vida é um chão móvel.
Aceite a vida com compreensão do jeito que é.
A compreensão liberta.
A vida é um processo de aprendizado. Você vai de uma aula para a outra. Não há ponto final na vida. É somente movimento até você morrer.
Diga sim à Vida! Confie na vida, viva com essa confiança e flua em harmonia com o fluxo da Existência. Tudo acontecerá do jeito que a vida quer. E permaneça alerta em cada momento.”
A realidade é que não existe nenhuma terra prometida que nos contemple com solidez e estabilidade para sempre, como tenta exigir a nossa mente. Que certezas temos sobre o dia de amanhã? O vírus que está aí, circulando nas esquinas do mundo, revela à humanidade muitas verdades sobre a vida.
O enfrentamento da possibilidade da morte tão próxima, quer seja mesmo a nossa ou a de um ente querido, remete à nossa própria frágil condição. Papai disse-me certa vez: “A morte é companheira da vida”. Não temos controle sobre nada, sequer sobre o nosso próprio corpo, imagine em relação aos diversos acontecimentos da vida! Dessa forma, quanta presunção daqueles que querem controlar o rumo dos acontecimentos a seu favor para satisfazerem os desejos de seu pequeno mundo...
O mundo está se movendo em câmera lenta, não adianta querer acelerar, ainda que se tenha um carro de motor megapotente. Aceitar a realidade do jeito que é, aprender a lidar com a mobilidade do chão da vida, em especial nestes tempos de grandes mudanças e acontecimentos totalmente impensados, parece ser a maior exigência no aqui e agora. Só então, haverá clareza mental para agir sem a identificação com as nefastas reações da mente, em condições de executar ações assertivas, que de fato atendam à real demanda deste período já histórico, que requer, mais do que nunca, calma e estabilidade emocional.
Sensato é cuidar do que está ao nosso alcance sem querer se debater no contrafluxo da onda que se apresenta agora, o que dará origem a um imenso desassossego interior. O desgaste em nível físico, mental e energético será enorme nessa condição e afetará diretamente o sistema imunológico, tão primordial na luta contra qualquer tipo de doença. No caso da covid-19, para a qual ainda não foi descoberto o remédio para o tratamento ou a vacina para prevenção, um sistema imunológico fortalecido assegurará maior eficácia no processo de recuperação.
Portanto, melhor respirar, soltar tensões, meditar, orar pelo bem de todos, abrir mão de padrões de controle, desacelerar, relaxar, exercitar o desapego, a paciência, a criatividade e a confiança na força da vida. Abrir os braços, deixar-se fluir nas ondas lentas que prevalecem no aqui – agora e, então, agir com consciência.
A pandemia da Covid-19 não ficará em vão para a parcela da sociedade que estiver mais alerta e consciente. Muitos aprendizados estão sendo colhidos e serão fortalecidos quando tudo acabar. Sim, porque tudo passa, tudo muda, assim nada fica igual por muito tempo – é a natureza da vida. E a vida continua se movendo e continua bonita!
Namastê!
Enildes Corrêa é Administradora, terapeuta corporal e professora de Yoga com formação e aperfeiçoamento na Índia. Site:www.solautoconhecimento.com.br
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