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Opinião
Segunda - 29 de Junho de 2020 às 06:38
Por: Valber Melo, Fernando Faria e Filipe Maia Broeto

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A edição inaugural do Diário Eletrônico da Ordem dos Advogados do Brasil – DEOAB, de 31-12-2018, veiculou o Provimento 188/2018 do Conselho Federal, que regulamenta o exercício da prerrogativa profissional do Advogado para a realização de “diligências investigatórias” para instrução em procedimentos administrativos e judiciais. A rigor, proporciona o que doravante denominamos de “Procedimento de Investigação Defensiva” – PID, a exemplo do que acontece com o “Procedimento de Investigação Criminal” – PIC, de condução exclusiva dos membros do órgão da acusação oficial (MPs).

No Brasil preferiu-se a expressão “investigação defensiva”, entendida como o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo Advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase do processo penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte (Provimento 188/2018 – CFOAB, art. 1º).

Diferentemente dos EUA, em solo brasileiro, a investigação presidida por um Advogado, ou banca/firma de Advogados, restringe-se ao campo penal, à investigação criminal, notadamente defensiva. Ou seja, à colheita de elementos voltados à defesa do cidadão submetido ao devido processo penal. As atividades descritas no Provimento 188/2018 – CFOAB são privativas da Advocacia, compreendendo-se como ato legítimo de exercício profissional, não podendo receber censura ou impedimento pelas autoridades públicas (art. 7º).

Nos termos do art. 2º do Provimento 188/2018 – CFOAB, a investigação defensiva pode ser desenvolvida na etapa da investigação preliminar, no decorrer da instrução em juízo, na fase recursal em qualquer instância de Tribunal, inclusive perante as Cortes Supremas, durante a execução penal e, ainda, como medida preparatória para a propositura da ação penal privada ou da revisão criminal ou em seu decorrer.

O art. 3º do Provimento estabelece que a investigação defensiva, sem prejuízo de outras finalidades, orienta-se, especialmente, para a produção elementos que venham a fundamentar pedidos de instauração ou até de trancamento de inquérito; rejeição ou recebimento de denúncia ou queixa; resposta à acusação; pedido de medidas cautelares; defesa em ações penais (pública ou privada); razões de recurso; revisão criminal; habeas corpus; acordo negocial (colaboração premiada, leniência e de não persecução penal), como outras medidas destinadas a assegurar os direitos individuais em procedimentos de natureza criminal.

O art. 4º atribui ao Advogado, na condução da investigação defensiva, promover diretamente todas as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato, em especial: colheita de depoimentos (podendo valer-se de armazenamento das informações em áudio e vídeo), pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados (valendo-se da esfera de disposição de vontade do constituinte), requerer a elaboração de laudos e exames periciais (diretamente à autoridades públicas), e realizar reconstituições, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição. Na realização da investigação defensiva, o Advogado poderá valer-se inclusive de colaboradores, como detetives particulares, peritos, técnicos e auxiliares de trabalhos de campo.

Durante a realização da investigação, enquanto presidente do procedimento, o advogado deve cercar-se de redobrados cuidados no sentido de preservar o sigilo das informações colhidas, a dignidade da pessoa humana, a privacidade, a intimidade e os demais direitos e garantias individuais, consoante regras constitucionais expressas, como o art. 5º, X, da Constituição.

Consoante prescreve o art. 6º, o Advogado e outros profissionais que prestarem assistência na investigação não têm o dever de informar à autoridade competente os fatos. A eventual publicidade do resultado da investigação, nele incluído inclusive a conclusão sobre o juízo de imputação penal, exigirão expressa autorização do constituinte.

De forma paradoxal, porquanto o próprio Ministério Público também não conta com lei lhe atribuindo poderes investigatórios, o Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal do Ministério Público emitiu uma Nota em que afirma que o Provimento 188/2018 – CFOAB seria inconstitucional, na medida em que a legitimidade para investigação requer norma constitucional expressa ou lei em sentido formal. Na visão do citado grupo, a OAB não poderia, por meio de sua iniciativa regulamentar, dispor sobre atos de investigação conduzidos por Advogado ou firma de advogados.

Os argumentos não vingam. A atividade regulamentadora do CFOAB possui fundamento constitucional (CRFB/88, art. 133). A expressão “indispensabilidade” está a encerrar ideia da disponibilização de mecanismos e instrumentos aptos ao alcance da finalidade constitucional, no qual denominamos como a “administração da Justiça”.

Antes mesmo de destacar o art. 133 da Constituição, cumpre ressaltar que a Lei Maior consagra o direito ao contraditório, expressando-se igualmente em relação à ampla defesa (art. 5º, LV). Nesse passo, a noção de segurança pública descrita no art. 144 da Constituição, direito e responsabilidade de todos, também se estende ao Advogado quando do exercício de suas funções, como, por exemplo, na condução da investigação defensiva.

Parece claro, portanto, que a investigação defensiva, nos comedidos limites do Provimento 188/2018 – CFOAB, decorre da própria sistemática do devido processo penal acusatório, modelo eleito pelo povo brasileiro como a regra, cujo objeto permite encontrar os alicerces elementares para a adequação do juízo de imputação (autoria e materialidade delitivas).

Afirmada a validade material do Provimento 188/2018 – CFOAB, não é difícil concluir que o citado provimento encontra respaldo legal, tanto é que o próprio art. 54, V, da Lei Federal 8.906/1994, dispôs sobre a competência do CFOAB para editar e alterar o Regulamento Geral, o Código de Ética e Disciplina, e os Provimentos que julgar necessários. Nesse sentido, nada mais fez o CFOAB do que regulamentar uma disposição atinente ao regular exercício da Advocacia.

Por outro lado, no plano de direito internacional, e nos termos do art. 5º, §2º, da Constituição, os direitos e garantias constitucionais expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José, Costa Rica, a 22-11-1969, o Brasil é Estado Parte da Convenção Americana de Direitos Humanos (CIDH). Esse documento encontra-se internalizado no ordenamento jurídico nacional com a roupagem de norma supralegal, conforme a decisão do Supremo Tribunal Federal adotada no âmbito do julgamento dos REs 466.434 e 349.703. Significa que os tratados de direitos humanos não submetidos ao processo previsto no art. 5º, §3º, da Constituição, estão acima das leis e abaixo da Lei Fundamental do Brasil.

A atenta leitura da CIDH não deixa dúvida. O art. 8º, itens 1 e 2, ‘b’, ‘c’, ‘d’, ‘e’ e ‘f’, estabelece as garantias judiciais mínimas para a pessoa humana ser submetida a um processo-crime. Deste preceito decorre a garantia da plena produção de provas (ou de elementos de informação). Ou seja, do amplo direito à atividade probatória, especialmente quando são assegurados o tempo e os meios necessários para preparação da defesa.

Nesta direção, forçoso afirmarmos que há uma nítida relação consequencial ou de direta implicação: a garantia informacional não se dissocia da garantia de produção de elementos de informação, quando a investigação se encontrar em nível preliminar, ou de produção de provas, quando em nível judicial.

A Constituição estabelece a “regra” do devido processo legal, decorrendo daí as garantias atinentes ao pleno exercício da defesa técnica por um Advogado devidamente inscrito na OAB. Adotou-se o sistema acusatório como modelo constitucional de processo penal. As partes (defesa e órgão da acusação oficial) situam-se em plano de equivalência dialógica. Produzem elementos de informação ou provas perante um juiz e/ou um tribunal imparcial, competente para julgar o caso penal sob um rito previamente determinado pela lei. Obviamente, as funções não são coincidentes. A separação é absoluta. O Ministério Público é o acusador oficial, como é, em alguns casos, o órgão oficial de investigação. Juiz ou tribunal é o órgão oficial que aprecia a pretensão penal deduzida, na denúncia, pelo órgão oficial da acusação. Ministério Público não julga; juiz ou tribunal não acusa.

A pergunta é: qual o fundamento constitucional que impossibilita a condução da investigação preliminar por parte de Advogado? Há interesse público subjacente, já que prestigia o cânone constitucional da isonomia, verificado no espectro do processo penal pela ideia básica da paridade de armas. O CNMP, similar ao CFOAB, editou a Resolução 181, que dispõe sobre o investigatório criminal a cargo do membro do Ministério Público. Esse ato normativo fundamenta-se, dentre outros itens mencionados no documento, no RE 593727, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado a 14-5-2015).

Além da concreção da isonomia (paridade de armas), do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, a subjacência também se encontra materializada na ideia de eficiência do processo penal. O CPP foi editado na déc. de 40 em uma conjuntura social e política diferente. Guardadas as devidas proporções, o CPC/2015 traz preceito interessante. Está escrito no art. 8º que ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. Consagra-se a eficiência do processo civil.

Qual a razão então para negar aplicação desse preceito do CPC ao caso, quando, ainda que defeituoso, o próprio CPP permite pelo viés da aplicação analógica descrita em seu art. 3º? Nenhuma. A negativa da legitimidade do Advogado ou firma de advogados para a condução da investigação defensiva, ao que parece, admitindo a ausência de fundamento constitucional contrário, encontra-se apenas na ganância pelo protagonismo na condução da investigação criminal. Evidentemente, não há espaço para tal desiderato no atual estágio da nossa democracia constitucional.

Nem mesmo no âmbito do direito norte-americano a suposta ausência de normas legais expressas sobre a investigação defensiva constitui-se em um obstáculo, já que, conforme acentua Franklyn Roger Alves Silva, em artigo veiculado pelo Conjur, a 19-2-2019, a American Bar Association trouxe importantes contribuições nesse campo a partir dos seus Standards sobre função defensiva e a Suprema Corte forneceu grande instrumento por meio do caso Brady v. Maryland e o reconhecimento do dever de compartilhamento por parte da acusação (duty to disclosure).

Como nota final, demonstrando que a essência da investigação defensiva já se encontrava presente no ordenamento jurídico nacional, ainda que não reconhecida como tal, podemos citar a notitia criminis (CPP, art. 5º, §3º), a assistência à acusação (CPP, art. 268), ou o pedido de busca e apreensão (CPP, art. 242) pelo acusado. Também diplomas legais, como a Lei de Acesso à Informação (Lei Federal 12.527/2011), a Lei de Registros Públicos (Lei Federal 6.015/1973), ou a Lei de Regulamentação da Profissão de Detetive Particular (Lei Federal 13.432/2017). Isto sem contar o Projeto de Lei 8.045/2010 (novo CPP), que ao dedicar um capítulo sobre a investigação criminal, consagra textualmente a investigação defensiva no seu art. 13.

A tendência é incontornável. Dentro dessa perspectiva, não parece haver dúvidas sobre a constitucionalidade, legalidade e funcionalidade do Procedimento de Investigação Defensiva – PID conduzido pelo Advogado, constituindo-se como uma decorrência do modelo de processo penal acusatório, igualitário, democrático e constitucional de nosso tempo.

Valber Melo é advogado criminalista. Doutor em Direito. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito Penal Econômico (COIMBRA-IBCCRIM). Pós-graduado em Ciências Criminais, Direito Penal e Processual Penal e Direito Público. Membro da Comissão de Juristas do CNMP para Reforma do Código Penal. Conselheiro Estadual da ABRACRIM. Membro da Comissão Nacional do Direito de Defesa da OAB. Presidente da Comissão de Direito Penal do IAMAT.

Fernando Faria é advogado. Mestrando em Direito Penal (UBA). Procurador da ABRACRIM. Membro do Instituto dos Advogados Mato-grossenses – IAMAT.

Filipe Maia Broeto é advogado criminalista. Professor de Direito Penal. Mestrando em Direito Penal (UBA). Especialista em Ciências Penais (UCAM), Processo Penal (COIMBRA/IBCCRIM) e Direito Público (UCAM). Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM e do Instituto dos Advogados Mato-grossenses – IAMAT. Autor e coautor de livros e artigos jurídicos.



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