Onde está vacina para endividamento das famílias? É cada vez maior brasileiros sem renda para pagar despesas com cheque pré-datado
Os efeitos da crise causada pelo novo coronavírus potencializaram uma estatística alarmante que já se avolumava mês a mês no país nos últimos tempos. É cada vez maior o número de brasileiros que não tem renda para pagar despesas com o cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, consignados, prestação de carro, seguro, etc.
Se no início do ano as pessoas já estavam vendendo o almoço para pagar a janta, agora estão se afundando no rotativo para dar conta dos boletos que se multiplicam enquanto o crédito fica mais caro e a renda padece.
O endividamento das famílias bateu novo recorde em agosto e a inadimplência é a maior em 10 anos. Já somos 64 milhões de brasileiros negativados, praticamente a metade da mão de obra ativa do país. Se considerarmos gente que deve, mas ainda não teve o nome sujo, são 76 milhões.
Só no Estado do Mato Grosso, a inadimplência cresceu 7% nos últimos 12 meses e hoje são mais de um milhão de pessoas que precisam gastar mais do que conseguem ganhar para viver. Sobreviver para ser mais exato. Esse crescimento está acima da média da região Centro-Oeste e acima da média nacional inclusive.
É cada vez maior o número de brasileiros que não tem renda para pagar despesas com o cheque pré-datado, cartão de crédito
Mas os números parecem não assustar os nossos representantes, pois não temos ouvido nossos parlamentares se indignarem com o sistema financeiro nesses tempos de crise e nem mesmo defenderem uma política de redução de juros.
Pelo contrário. Nossos representantes do Senado, por exemplo, se une em uníssima voz quando o assunto se refere à proteção dos banqueiros e detentores de crédito.
Justo ele, o sistema financeiro, que não vem contribuindo em nada para minimizar os efeitos perversos da crise do coronavírus. Desde a injeção de R$ 1,2 trilhão pelo Banco Central em liquidez para os bancos, o crédito para as empresas teve alta de 6,4% em março, mas o saldo total para as pessoas físicas avançou apenas 0,3%.
Sem contar a situação dos juros do país. Verdade seja dita... baixaram. Entre fevereiro e junho, os juros médios do rotativo do cartão caíram de 322,8% para 300,3% ao ano; as taxas do cheque especial foram de 130,6% para 110,2% ao ano. Seria até cômico se não fosse tão trágico.
Nesse momento a única forma de reduzir os juros no Brasil é através de um teto estabelecido em lei. A razão para isso é que o nosso mercado de crédito é extremamente concentrado. Temos poucos grandes bancos que controlam a maior parte da nossa carteira de crédito. O oligopólio é tão concentrado que estabelece o preço que quiser e com as condições que bem entender. Quem não quiser se adequar simplesmente não tem alternativa segura para recorrer.
Além disso, o Brasil é um país com uma massa enorme de pessoas que necessitam acessar o crédito para consumir e ter qualidade material de vida. Aí junta “a faca e o queijo”. Temos uma população que para poder consumir o básico de uma vida com um mínimo de qualidade precisa do crédito. E do outro lado do balcão temos uma concentração extrema do mercado de oferta de crédito.
E a corda sempre arrebenta com maior dano para o lado mais fraco, pois enquanto os mais pobres são obrigados a gastar tudo o que recebem, os mais ricos seguram o consumo por conta da incerteza com a economia, emprego e com a própria continuidade da pandemia. O resultado disso é que o percentual de endividamento das famílias que recebem até 10 salários mínimos é o mais agudo no país. Subiu em agosto para 69,5%, contra 69%, em julho. Em contrapartida, entre as famílias com renda acima de 10 salários, a proporção caiu para 57,8% em agosto, ante 59,1%, em julho.
O Brasil enfrenta o novo coronavírus numa situação de muita debilidade depois de dois anos de recessão, quatro de austeridade fiscal e de crescimento insignificante.
E essa nova doença é muito mais que um agente infeccioso. É um revelador implacável de nossas falhas coletivas. Deste ponto de vista, a crise sanitária está se transformando diante dos nossos olhos em alerta econômico.
Com esse comportamento parasita do sistema financeiro será muito difícil recuperar o país do grave processo de desindustrialização, da destruição do setor produtivo da economia e do desemprego. Mas podemos usar essa experiência coletiva tão devastadora para passarmos a combater não só o coronavírus, mas o vírus da desigualdade que continua a fazer milhões de vítimas.
Euclides Ribeiro é advogado.
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