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Opinião
Sexta - 23 de Outubro de 2020 às 10:59
Por: Eduardo Gomes

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Era uma vila; sim, uma vila rotulada distrito. Perdida à margem da Rio-Bahia, a longitudinal que era a única ligação por terra – literalmente por terra, entre o Rio de Janeiro e o Nordeste. População pequena, humilde.

Todos se conheciam. Nas tardes de domingo a bola rolava no campinho que durante a semana era pasto.

O bate-bola era nas imediações do lugar. Caminhoneiros paravam seus possantes. Assistiam ao jogo, conversavam com moradores pra fugir da solidão na boleia sem som, sem ar, sem direção hidráulica. O Brasil interior respirava brasilidade e o mesmo faziam seus profissionais do volante.

A movimentação na rodovia era pequena. Pro Sul desciam paus de arara, cebola pernambucana, alho, sisal, madeira, sal, móveis rústicos, redes. Na direção oposta, praticamente tudo, desde as cegonhas Studebaker com automóveis a Água Velva, pilha Rayovac, Benzetacil, creolina Pearson, cera Parquetina, enceradeira Arno, forno JMS, filtro São João, pente Flamengo, enlatado Swith Armour, extrato de tomate Elefante, Alka-Seltzer, tinta Parker, ervilha Etti, enxada Tarza, canivete Corneta, Biotônico Fontoura, LP de Nelson Gonçalves, garrucha Laport, botas Vulcabras, chapéu Ramenzoni.

Isolado ao volante na rodovia esburacada que ora era um interminável canudo de poeira, ora um atoleiro sem fim, o motorista encontrava nos eventos pelo caminho a maneira de fugir da solidão. Encostava seu FNM, Big Job, Mack, Chevrolet Martha Rocha, Studebaker, International Harvester, Berliet, GMC Marítimo, Nash, Volvo, descia, se misturava aos moradores, vivia o futebol, torcia, sorria, vivia socialmente e então retomava à sua jornada estrada afora.

O Brasil interior era um todo formado por individualidades que se completavam

Era assim no final dos anos 1950 e começo da década de 1960. A bola rolava unindo moradores e motoristas em trânsito, num clima de harmonia, com os caminhões abertos sem que ninguém tocasse um dedo sequer em sua boleia ou carga.

Nós, os habitantes do lugar, olhávamos com admiração para os estranhos senhores do volante, e eles, nos tratavam bem.

O Brasil interior era um todo formado por individualidades que se completavam.

O Chevrolet Martha Rocha saltava aos olhos. A sabedoria popular o apelidou assim em alusão ao símbolo da beleza da mulher brasileira, a musa baiana Martha Rocha, que em 1954 foi a primeira Miss Brasil e somente não conquistou o cetro Mundial pela força do imperialismo americano. O fabricante gostou do apelido, o transformou em nome e o usou para promover a venda de seu primeiro caminhão produzido em sua montadora paulista.

O governo JK deixou em obra a pavimentação da Rio-Bahia, que em 1962 foi entregue ao tráfego com o corte da fita inaugural e se passou a chamar pomposamente BR-116. Com o asfalto, a rodovia foi deslocada para fora da minha vila, quer dizer, distrito. Ganhou novo trajeto. Perdemos a companhia dos motoristas que assistiam os jogos conosco aos domingos.

Os caminhões se modernizaram. Viraram máquinas. O caminhoneiro agora é carreteiro e não fica só. Com seu celular tem o mundo nas mãos, sua boleia agora é cabine confortável.

A vila, quer dizer, o distrito, se tornou cidade, afastada da rodovia 1,6 quilômetro, mas mesmo assim cidade com todas as prerrogativas. Hoje, seus moradores descendem em parte dos que viveram aquele tempo e, alguns, inclusive são os próprios. Muitos subiram ao céu para narrar ao Criador a maravilha que foi aquele período; outros buscaram, terras distantes em Mato Grosso, Pará e Rondônia.

Uma bola de fabricação artesanal, toscos uniformes esportivos, jogadores amadores, torcedores parentes uns dos outros ou vizinhos ao lado. Em meio a esse ambiente de confraternização social, brasileiros de diversas regiões, de passagem, paravam para alguns momentos de contato humano – algo impossível de se pensar agora por conta da correria do mundo e do medo da violência generalizada.

O Brasil ganhou em infraestrutura de transporte, mas perdeu em qualidade de cidadania. Não há mais aquele ontem fraterno da minha vila, quer dizer distrito de Alpercata, no município de Governador Valadares.

No asfalto as carretas transitam em alta velocidade. Nas cidades à margem das rodovias as pessoas correm, atropelam a vida, passam por por ela. No hoje a bola rola na tela da TV, em estádios vazios, e nós torcemos na solidão do isolamento social na sala da casa onde habitamos vegetativamente.

Saudade dos tempos dos caminhões parados, a bola rolando, as meninas do lugar flertando com motoristas sonhando em encontrar entre eles o príncipe encantando montado em seu possante Fenemê passo longo, azul, com cama macia na boleia. Pobre humanidade que retrocede enquanto a ciência avança, que ganha contornos de impessoalidade na contramão das relações humanas, que troca a harmonia pela violência e o respeito ao meio ambiente pelo desmatamento criminoso.

A vida é caminho sem volta, mas se Deus me concedesse o direito de escolher uma estrada, não tenho dúvida que pegaria a velha Rio-Bahia e à exemplo daqueles caminhoneiros, pararia na minha vila, quer dizer, distrito, pra ver seu povo feliz movido pelo sentimento de irmandade e pela paixão pelo capotão, que era o nome da bola artesanal.

Eduardo Gomes é jornalista em Cuiabá.



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