A intenção por trás do ódio Quando Pedro me fala de João, sei mais de Pedro do que de João
Um grande mestre da psicanálise me contou: Quando Pedro me fala de João, sei mais de Pedro do que de João. Existem camadas e intenções nas entrelinhas dos jurados do tribunal da Internet.
Falas e ações públicas são um prisma, com superfícies lapidadas e arestas esmeradas, feitas para serem vistas, mas com luz e no ângulo certo, você enxerga o que está escondido e o branco se revela cheio de cores. As opiniões cruas e francas não são expostas ao sol, às vezes elas estão fora de moda e opacas.
O discurso de ódio, o ódio do bem, o ódio justiceiro, “apenas contra quem merece” é a camuflagem perfeita para quem quer se vender como desconstruído, moderno e livre de preconceitos. É a sinalização de virtudes que não podem ser vangloriadas em voz alta.
Antagonismo simples, que nosso cérebro bípede assimila sem raciocinar. Censurando ao outro, eu me promovo
Soa soberbo e sem sal gritar, “Eu sou tolerante, respeito a todos!”, “Eu nunca ofendo ninguém!", “Olhem pra mim, eu sou uma ótima pessoa!”. Não cai bem, e de que adianta mencionar que você está só fazendo sua obrigação?
Algumas pitadas de ódio justiceiro melhoram o sabor dessas afirmações. Ao declarar o alvo de um cancelamento digital, você se posiciona do lado oposto ao “cidadão de mal” que, sabendo ou não, falou ou fez o que você julga errado.
Antagonismo simples, que nosso cérebro bípede assimila sem raciocinar. Censurando ao outro, eu me promovo. Pessoas que nunca se comprometeram em determinadas pautas identitárias, como o combate à xenofobia ou racismo, se tornam engajadas do dia para noite.
Nunca aplicaram o que brandam na vida pessoal, nunca abriram um livro sobre o assunto e se tornaram referências. Não tem diploma, mas tem o selo da lacração. Monetizam em cima disso, ganham dinheiro pelas suas curtidas e constroem uma marca pessoal.
Empresas também surfam nessa onda, da fabricantes de cerveja ao seu banco, todos querem uma lasca do ódio do momento. Notas de repúdio, selos de luta na foto de perfil, um trocadilho espinhoso. De forma arquitetada, você passa a enxergar aquela marca com mais valores e princípios e se identifica. Nunca promoveram a contratação dos grupos que você defende, jamais repensam a cultura corporativa que gera desigualdade e esgotamento em seus funcionários, mas estão ali, do seu lado contra o inimigo em comum.
Aplique esse mesmo olhar aos seus políticos mais adorados. Pois é.
Isso era inevitável às relações digitais, que carecem da espontaneidade da vida offline, e é justamente isso que a cultura do cancelamento está matando. Se é proibido errar, é perigoso ser autêntico. Escolha as palavras, suprima opiniões, se você ainda não está alinhado, melhor ficar em silêncio.
Respeito e apoio diversos movimentos importantes que nos fizeram avançar socialmente, sem eles não estaria aqui. Que continuem, que brandem, mas exponham atitudes reprováveis de uma forma construtiva e estratégica. Desconstruir tem menos efeito prático que ir lá e fazer o bem.
A crítica eterna, a exclusão, a porrada verbal gera antipatia, afasta os que não conhecem o que você defende. Quem só ataca, não defende nada.
Antes da emoção subir à cabeça, se indignar, pense, qual a intenção de quem está compartilhando isso? Eu conheço ações efetivas dessa marca ou pessoas que promovam o que acredito? A adrenalina da revolução pelo celular contagia, é viciante e eles sabem disso.
Para fugir desse ciclo de forma prática, para cada comentário negativo que fizer, escreva dois elogiando boas ações, digitais ou não. Promova duas vezes mais o seu pensamento do que o oposto. A gratidão vai repercutir menos que a crítica, mas vale a pena.
E se tiver dificuldade de encontrar o dobro de ações louváveis do que reprováveis, diminua as postagens de ódio ou faça você mesmo algo que valha a pena ser compartilhado.
Manoel Vicente de Barros é psiquiatra em Cuiabá
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