E se fossem todos bandidos? Direitos humanos são para todos. Inocentes e criminosos
“Eram todos bandidos.”
Foi essa a declaração de uma alta autoridade da República acerca de 27 das 28 vítimas fatais da recente operação policial na comunidade do Jacarezinho no Rio de Janeiro. A 28ª vítima foi um policial, atingido por um disparo de traficantes.
A fala revelou um certo grau de vidência, pois as identidades das vítimas só foram divulgadas dias depois. E, de acordo com os registros divulgados pelas autoridades, algumas nunca responderam a um processo penal e outras tinham anotações de crimes de menor gravidade como desacato.
Mas, e se fossem todos bandidos perigosos? Ou se fossem todos inocentes? Ou alguns bandidos e outros inocentes? E daí?
Faria alguma diferença?
Aos olhos da Constituição brasileira, nenhuma.
Direitos humanos são para todos.
Inocentes e criminosos. Adolescentes e idosos. Milionários e desempregados. Analfabetos e doutores. Ninguém pode ser tratado com privilégios ou sofrer arbitrariedades. Essa é a regra no estado democrático de direito.
Direitos humanos são para todos. Inocentes e criminosos
Enquanto essa elementar noção civilizatória não estiver sedimentada em cada cidadão brasileiro, principalmente nos agentes públicos e de modo especial nos que atuam na segurança pública, viveremos a constante ameaça de violação às garantias e direitos individuais.
Quem tem que sentenciar se alguém é criminoso é o juiz, após um processo onde se exerce o contraditório e o direito de defesa. Quem fixa a pena para o crime é o magistrado, nos limites da lei, que no Brasil não prevê a pena de morte.
Sem exceções: do ladrão de galinhas ao traficante de drogas, do corruptor ao corrupto, do estuprador ao homicida, todos têm direitos que devem ser respeitados e a violação de algum dos direitos, ainda que do pior dos indivíduos, não pode ser tolerada, que dirá incentivada ou aplaudida.
Fora disso, é a barbárie. Fora disso, nos igualamos aos “tribunais do crime” instituídos por facções criminosas. Fora disso, nos tornamos reféns dos esquadrões da morte e das milícias, cada vez mais violentas, gananciosas e diversificadas no seu portfólio de atividades criminosas.
Chega a ser surrealista ter que escrever isso em 2021, quando a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é de 1789.
Estou cônscio que, ao defender os direitos humanos, posso desagradar a muitos conhecidos: colegas de trabalho, vizinhos e até um ou outro parente, que vibram quando têm notícia da execução de algum criminoso ou apontado como tal. Essas pessoas sentem-se vingadas e afirmam que foi feita justiça. Algumas invocam o nome de Deus.
Outras buscam popularidade, pois o discurso de “punir a qualquer custo, de qualquer jeito” e “bandido bom é bandido morto” faz bastante sucesso há décadas.
Ora, se é vingança, não é justiça. Deus não é violência, é amor. A mensagem de Cristo nunca foi a de “um olho por um olho”. Se dizem cristãos, mas agem como se não conhecessem o Evangelho e fossem prisioneiros mentais do Velho Testamento.
Policial bom não é o que mais dispara tiros ou mata “suspeitos”, mas o que melhor evita a ocorrência de crimes e, quando esses ocorrem, identifica os autores e os entrega ao sistema judiciário. Infelizmente, mesmo após a festejada intervenção federal na segurança do RJ em 2018, comandada pelo general Braga Netto, as quadrilhas continuam sendo bem abastecidas com armas e drogas.
Corro o risco de ser criticado ou mal compreendido, mas afirmo convicto: a intervenção policial no Jacarezinho foi um fracasso de inteligência com relação à execução dos mandados de prisão que a motivaram (foram detidos somente 3 dos 21 procurados). Houve uma sucessão de gravíssimas violações de direitos, como a invasão de domicílios de trabalhadores, e de erros tático-operacionais, como a exposição ao risco de dezenas de crianças, idosos e até passageiros do metrô.
O processo foi de uma letalidade inédita, em circunstâncias que levantam fundadas suspeitas de que algumas das mortes tenham sido resultantes não de confrontos, mas de execuções sumárias e ilegais.
Não é para festejar. É para lamentar e apurar. E não repetir.
Luiz Henrique Lima é auditor substituto de conselheiro do TCE-MT.
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