Educação inclusiva
As minhas mais importantes lembranças da infância são e sempre serão carregadas de amor avoenga. Esperava ansiosa o final de cada ano para me deslocar ao local onde entendia ser a minha casa mais feliz. Lá tudo podia. Casa de avó e avô...
São muitas as lembranças extraordinárias e felizes! Convivi bastante com as duas avós, materna e paterna, que me deixaram saudades eternas. Em uma dessas férias, na cada da afável Vó Modesta, que conversamos sobre algo que marcou a minha vida indelevelmente. As crianças de AquidauanaMS, município de nascimento e local de férias, me relataram que uma das filhas da Dona Mariazinha, seria muito diferente. Afirmaram: “Ela é diferente, não tem voz de mulher, e é muito calada. Falam que é mulher-homem”.
Todas as manhãs acordava cedo na casa da Vó Modesta para acompanhá-la na feirinha. Inclusive, é de lá vem o meu grande gosto por frutas. Comíamos em algumas ocasiões o famoso “pastel de queijo da Chica” com guaraná. Sem dúvida, aquele momento era um evento. Íamos à pé, a vó e eu. No dia subsequente que haviam me contado sobre a “filha diferente” da dona Mariazinha, passamos em frente à casa delas. Então perguntei para a Vó Modesta se era verdade que aquela senhora, a dona Mariazinha, tinha uma filha diferente, a contando o que os amiguinhos e amiguinhas haviam dito. Com uma tranquilidade de quem possuía imensa sabedoria ela me respondeu que não. Disse que aquela mulher, que havia sido a sua amiga de infância, tinha seis filhas. Afirmou, ainda, que uma das filhas havia nascido hermafrodita, explicando do que se tratava.
Muito curiosa, pois nunca tinha visto falar em algo semelhante, com aproximadamente 7 anos de idade, procurei perguntar por tudo. Com imensa naturalidade e clareza, aquela mulher com pouco estudo fora responsável por começar a desmistificar e não deixar adentrar em minha vida o preconceito. Explicou que nada havia de errado, o bebê nascera com dois órgãos sexuais. Os profissionais da medicina fizeram investigação na recém-nascida para saber qual dos sexos ela possuía internamente. Descobriram que possuía órgãos internos femininos, e realizaram a cirurgia para a retirada do órgão masculino que aquele corpo possuía. Apenas isso, disse ela.
Foi precisa em esclarecer que o fato de aquela mulher ter crescido quieta e com o tom de voz forte, em nada a diferenciava das demais pessoas. E prosseguiu: “Filha, quando a encontrarmos a vó irá a apresentar, e você verá que não há nada de errado com ela.” Disse mais: “E se tivesse, será que devemos escolher a quem respeitar ou tratar bem?” Nenhuma dúvida persistira em mim, a partir daquela explicação.
Acabaram as férias, voltei para casa. Nas férias ano seguinte, lá estava novamente com aquelas e aqueles que tanto me faziam bem. Em poucos dias com a Vó Modesta, quando estávamos no mercado, ela cumprimentou uma linda mulher. Voltávamos para casa e a doce Vó Modesta me perguntou: “Zaninha, o que achou daquela moça que a vó cumprimentou no mercado?”. “Achei linda, vó!”, a respondi. E ela emendou: “Então, ela é a filha da dona Mariazinha que te disseram ser diferente. Viu alguma diferença nela?”
Hoje reflito sobre a forma do tratamento que esse assunto me foi abordado quando a questionei. Quisera os ensinamentos fossem assim passados para as crianças! Diferente e importante foi a senhora, vó querida!
Rosana Leite Antunes de Barros é defensora pública estadual.
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