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Opinião
Quarta - 11 de Agosto de 2021 às 09:53
Por: Sebastião Carlos Gomes de Carvalho

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Dizer que uma imagem vale mais que mil palavras só reforça o dito chinês que a séculos vem sendo repetido. É claro que algumas imagens são mais impactantes que outras e, em assim sendo, se fixam por mais tempo em nossa memória.

E, quase sempre, nos levam a uma reflexão mais aprofundada sobre o fato mostrado. Mato Grosso acaba de contribuir para isso.

Numa imagem que correu o Brasil, vemos filas de pessoas, aglomeradas em plena pandemia, sôfregas, com olhar em que a angustia é partilhada com mal disfarçada alegria.

Pessoas simples, a maioria de chinelos de borracha e de vestimentas modestas, fazem fila para conseguir um pedaço de osso. Alguém distraído e menos atento à realidade poderia supor que os ossos iriam para os cães, tradicionais consumidores dessas peças. Mas, não. Sim, o osso doado pela caridade da proprietária de um açougue, era o alimento tão esperado por desnutridas crianças. Os fiapos de carne grudados aos ossos era prêmio dos mais aguardados.

Pessoas simples, a maioria de chinelos de borracha e de vestimentas modestas, fazem fila para conseguir um pedaço de osso

Tal situação de pessoas famintas, desesperançadas, vivendo abaixo da linha da pobreza, com um nível mínimo de proteínas e ferro, nutrientes estes fundamentais na infância e na gravidez, constituem um escândalo. São infra homens que estão sendo gerados para o futuro. Sim, penso sobretudo nas crianças. “Futuro do Brasil”? Então puxo pela memória um dos poemas mais soturnos que já li. O grande, e tão pouco lido, Manuel Bandeira escrevia há algumas décadas:

Vi ontem um bicho.

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa

Não examinava, nem cheirava

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Afinal as filas imensas, famintas e ansiosas, fotografadas e televisionadas eram a de um país devastado por uma guerra ou vítima de uma catástrofe provocada pela força da natureza? Não, meu caro leitor.

O cenário cuiabano, que se mostrou ao Brasil, ao contrário, acontece em uma das regiões mais prósperas do país e, até o momento, imune a terremotos e a tornados. Pelo menos, não desses provocados pelos elementos naturais. Então, senhoras, vamos à afirmação dessa riqueza. Está em sites do governo e outros oficiais: o último dado disponível pelo IBGE (2018), através da Pesquisa da Pecuária Municipal – PPM, registra que MT possuía perto de 30 milhões de bovinos, o que representava nada menos que 13,8% do total nacional e, só para mostrar o crescimento, no ano seguinte esse número chegava a 32 milhões de cabeças. Não é pouco.

Conforme dados divulgados pelo INDEA e pelo Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária – IMEA o ritmo anual dessa expansão vem sendo em média de 2,13%. Já algum tempo MT é dono do maior rebanho brasileiro. Mas, para não ficarmos apenas na proteína animal, vejamos o caso das commodities agrícolas, na qual se destaca a produção de soja, para citar um único exemplo. Segundo o mesmo IMEA [março/21] a safra prevista para 2020/2021 alcançará perto de 36 milhões de toneladas, representando um crescimento recorde de 0,94%. Neste item, mais uma vez MT está em primeiro no pódio.

Em resumo, o PIB, ou seja a soma de todas as riquezas produzidas no Estado, registra um crescimento fenomenal de 41%, [entre os anos de 2010 e 2022], liderando a economia nacional, para a qual contribui de modo significativo. Então, não há porque não afirmar que estamos num Estado realmente rico e no qual, por conseguinte, vivem algumas das pessoas mais ricas do Brasil.

Eis aqui a questão: então, porque tanta gente passando fome? Por que favelas já estão aparecendo em cidades do interior, sem falar nas já existentes na capital? Por que a violência pública grassa como praga? Então por que, no Estado dono do maior rebanho bovino do Brasil e um dos maiores do mundo, a fila do osso? Por que milhares de mães justificadamente dão graças a Deus por receberem um pedaço de osso para tentar apaziguar a fome de seus pequenos?

O que está faltando na mesa posta em um Estado tão rico?

Vivi parte de minha juventude nos tumultuados e por vezes sombrios anos sessenta e setenta. Entre as leituras que nos marcaram, a mim e a muitos jovens, estavam dois textos ainda hoje vivos. Um deles, o da grande brasileiro Josué de Castro (1908 - 1974). Em 1964, cassado, perseguido, proibido de lecionar, exilado, foi dar aula em respeitadas Universidades europeias, Sorbonne, Genebra. Anos antes havia publicado uma obra revolucionária e que marcaria gerações: “Geografia da Fome”. Nela o médico e sociólogo desmascarava o mito de que o fenômeno da fome era devido a influencias climáticas ou que era culpa da improdutividade da população que, em grande parte, optava pelo ócio.

Argumento que, de certo modo, persiste ainda. “Interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado” - escreveu emblematicamente.

O outro texto marcante foi o do Papa João XXIII (1881 - 1963). A Encíclica Pacem in Terris [Paz na Terra], divulgada dois meses antes de sua morte, propugnava por uma nova e dinâmica linha para a Doutrina Social [o aggiornamento] compatível com os tempos modernos da Igreja, mas que era também dirigida para todos os “homens de boa vontade”. Um pensamento doutrinário que estabelecia como base estruturante a Verdade como fundamento, a Justiça como norma, a Caridade como motor e a Liberdade como clima.

Textos estes, meio século depois, atualíssimos. E para mim, mais atuais ainda quando, diante da fila do osso, toma-se conhecimento de mais uma contribuição de Mato Grosso. Uma inusitada notícia, divulgada até em jornais do exterior, causou estupefação a alguns. Não era uma notícia qualquer. Num momento de tantas dificuldades econômicas para a imensa maioria da população, num momento em que os brasileiros se debatem numa crise social e psicológica de inesperadas proporções resultante de uma pandemia que diariamente ceifa vidas valiosas e destroem famílias, uma pequena nota, que logo seria reproduzida pelos sites, jornais impressos e pela televisão, teria o impacto de abalar os mais ingênuos.

É que, no dia 19 de fevereiro, o Sport Club Internacional, de Porto Alegre, popularmente chamado de “Colorado”, postava em seu site “que recebeu nesta sexta-feira, a doação de R$ 1 milhão de Elusmar Maggi Scheffer. O torcedor colorado, morador de Cuiabá-MT, assinou o termo que repassa o valor ao Clube sem qualquer tipo de contrapartida.”.

E, efusivamente, complementava: “Registramos o nosso mais sincero agradecimento diante de atitude tão genuína, que demonstra o quanto o torcedor colorado é apaixonado e não mede esforços para contribuir com o clube do seu coração!” Essa bagatela era destinada a que o time gaúcho pagasse multa que permitisse a um jogador entrar em campo para enfrentar o carioca Flamengo. Um milhão de reais por noventa minutos, quer dizer, o cabalístico número de R$ 11.111,11 por minuto de jogo, que, como se sabe, acabou sendo muito mais já que o referido jogador não atuou todo o tempo regulamentar. “Generosidade”, sem dúvida, digna de entrar para o Guinness Book.

Para mim, não obstante, foi sobretudo oportunidade para algumas reflexões. E, de quebra, trouxe-me à memória o período áureo do ciclo da borracha na Amazônia, entre os anos de 1879 e 1912, época em que corria tanto dinheiro que Manaus era conhecida como a “Paris dos Trópicos” e em que os magnatas, nos bordeis que frequentavam, acendiam charutos importados com notas de mil reis e os mais ricos até com notas de libras esterlinas. O esbanjamento, porém, não duraria para sempre. Os ventos da economia mundial soprariam em outras direções e a época do fausto e do luxo desmoronaria.

E agora, para encerrar, trago novamente o grande Josué de Castro que gravou uma frase que tem o poder profético e que, diante de todos esses fatos deve, no mínimo, nos provocar, espero, uma reflexão: “Existem dois terços de pessoas que não dormem porque sentem fome, e um terço de pessoas que não dormem por medo dos que sentem fome.”

Sebastião Carlos Gomes de Carvalho é professor e historiador



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